CARLOS E JOÃO CARLOS – Pão de Canela e Prosa
Pão de Canela e Prosa

CARLOS E JOÃO CARLOS

Naquela noite ele estava sozinho em casa e sentou-se na sua poltrona preferida, copo de vinho ao lado e uma música de fundo. Estava particularmente triste com a partida de seu grande amor. Viveram juntos por dez anos e agora o jovem que o divertia tanto, o amava tanto – e ele amava tanto -, morreu. Foi uma luta desesperada durante mais de vinte dias na UTI, necessidade de respiração artificial, transfusão de sangue, infecções associadas e, enfim, ele foi acordado de madrugada com a terrível notícia da morte do amado. Ele esperava e não desejava jamais ter que ouvir tal aviso do médico de plantão naquela noite.
Ele se lembrou de quando conheceu João Carlos. Estavam em uma festa da empresa. Trabalhavam ambos em uma empresa de representação de medicamentos e nunca haviam se visto. Ambos com trinta e dois anos de idade e várias tentativas frustradas de encontrar um amor de verdade, estavam desiludidos. O destino os fez sentarem-se à mesma mesa e se apresentaram, se gostaram e saíram da festa juntos. Tinham, no entanto, um receio de se entregarem e se machucarem novamente. Mas quiseram investir e acabaram indo morar juntos depois de dois meses de relacionamento. Carlos chamou o namorado para viver com ele na sua casa e a vida foi sensacional para ambos. Eles se completavam, gostavam das mesmas coisas e puderam esquecer todas as desilusões dos seus passados.
Na empresa, foi comemorada a união dos dois e dois anos depois ocorreu a festa do casamento de João Carlos e Carlos. Todos achavam muita coincidência os nomes.
Carlos se levantou depois da notícia e se preparou para ir para o hospital resolver o sepultamento do marido. Estava acabado. Ele não sabia muito que fazer.
Quando completaram dois anos de casados, puderam fazer uma longa viagem. João Carlos queria muito conhecer Nova York e Carlos acabou aceitando a sugestão apesar de querer ir para Portugal. Divertiram-se muito em Nova York. Ficaram vinte dias nos Estados Unidos e voltaram ainda mais apaixonados.
Carlos chegou ao Hospital e recebeu as instruções para o sepultamento: caixão fechado, menos de duas horas no cemitério e o mínimo de pessoas no local. Não poderia ter aglomeração por conta da pandemia. Ele olhou a urna lacrada e deixou que as lágrimas molhassem sua camisa. Não tinha porque esconder o choro.
Quando começou a pandemia, ambos tiveram que parar de trabalhar. Faziam propaganda de medicamentos em consultórios médicos e os médicos pararam de atender normalmente. Alguns ficaram meses sem atender ninguém. Eles ficaram em casa o máximo tempo possível. Uma semana Carlos fazia compras e resolvia alguma coisa extremamente importante, na outra semana João Carlos se responsabilizava nos afazeres externos. A empregada se demitiu e eles passaram a cuidar da casa, da alimentação, do lar.
Carlos deixou ordens para prosseguirem com os trâmites do sepultamento e foi em casa para tomar um banho, telefonar para alguns amigos e ir ao cemitério. Provavelmente ele iria sozinho enterrar o marido.
Certo dia, João Carlos teve febre. Carlos assustou-se e conversou com o amor de sua vida. Queria levá-lo ao médico, ele se recusou. Queria que ele fizesse um exame e João riu da preocupação do marido.
Dois dias depois Carlos teve febre também e muita dor no corpo. João Carlos que ainda não melhorara dos seus sintomas, fez exatamente como o companheiro, mas conseguiu ser mais persuasivo e Carlos concordou de irem ao Pronto Atendimento do Covid. Examinados pelo médico de plantão, João Carlos foi internado e Carlos voltou para casa sozinho.
Foram dias de solidão e tristeza profunda. Ele se questionou inúmeras vezes: Por que não levou o marido ao médico no início dos sintomas? Por que João Carlos estava internado e ele estava em casa? Por que ele estava passando por aquilo? Por que não podia ficar junto do amado e lhe dar o conforto que ele precisava? O que será que aconteceu? Quando foi que se contaminaram? Será que foi alguma vez que um deles foi ao banco, ou ao mercado. Eles estavam vendo as ruas da cidade cada vez mais cheias de pessoas. Observaram que de dez pessoas, oito usavam máscaras, desses oito, quatro as usavam no queixo, dois no cotovelo e outros dois nos lugares mais inusitados. Será que pegaram na rua? Eles tinham que ir e vir para fazer o necessário, mas as ruas não eram seguras. Eles estavam em casa. Não visitavam amigos, parentes, não saiam para tomar uma cerveja – alguns bares estavam abertos e burlavam as regras da pandemia. Comiam em casa. Estavam em casa. E ficaram doentes. Os dois ficaram doentes e puderam constatar a realidade: cada indivíduo responde de uma forma e é por isso que o distanciamento social é tão importante. Aquelas pessoas que estão se contaminando nas ruas, estão levando para suas casas a infecção para seus entes queridos. Muita gente não tem resistência ao vírus e acabará morrendo. Na televisão, muita gente chorando e se perguntando por que aconteceu com o pai, ou com a avó, mas se esquecem de que foram eles mesmos que contaminaram aquelas pessoas com alguma co-morbidade.
Sozinho em casa, sem sintomas, sem a doença depois de quatorze dias, sua vida era chorar de tristeza, de medo de perder o amor de sua vida e solidão. No meio da pandemia nem um amigo poderia estar com ele. Ele estava trancado em casa. Passou a beber todos os dias. O prazer de tomar um vinho no fim de semana, passou a ser a fuga de todo dia. Ele não estava trabalhando, não tinha mais ninguém em casa, o companheiro pior a cada dia, na ventilação mecânica não iria entrar pela porta e lhe dar um abraço. Sua vida estava um caos verdadeiro.
Ele não conseguia entender porque João Carlos morreu e estava ali na sua frente no cemitério e ele nem podia vê-lo. Dois amigos da empresa vieram ao sepultamento, mas nem cumprimentar pegando na sua mão, puderam – ele queria um abraço, aliás, muitos abraços, na realidade o abraço do morto que dentro da urna também estava só, como estivera só nos últimos vinte dias na UTI.
Carlos estava na sua poltrona e não sabia o que fazer da sua vida. Iria beber até apagar ali mesmo, ou na cama e amanhã quando acordasse e o dia fosse igual a todos os outros pensaria no que fazer. A única certeza era que naquela pandemia tudo poderia acontecer. Ele teria que erguer a cabeça e continuar tentando sobreviver. Até quando? Ninguém nunca saberá!

               

Sobre o autor Ver todas as postagens

Artur Laizo Escritor

Artur Laizo nasceu em 1960, em Conselheiro Lafaiete – MG, vive em Juiz de Fora há quatro décadas, onde também é médico cirurgião e professor. É membro da Academia Juiz-forana de Letras e da Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafaiete, Sociedade Brasileira de Poetas Aldravistas e presidente da Liga de Escritores, Ilustradores e Autores de Juiz de Fora - LEIAJF.

Deixe uma resposta

Seu endereço de email não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados *