Ele morreu no dia de Nossa Senhora Aparecida – padroeira do Brasil, feriado, dia santo. Era costume daquela cidadezinha do interior e daquele povo da região, soltarem fogos de artifício em homenagem à Santa, ao meio-dia.
Como soltariam fogos e comemorariam o dia da Santa se ele morrera? O caixão na sala pedia piedade de todos. O rosto bondoso do defunto merecia uma auréola de imaculada perfeição. A viúva chorava a mais não poder e as pessoas a confortavam:
– Mas foi melhor assim, querida – dizia uma -, ele nem sofreu.
– Tão bom homem – dizia outra -, tão correto.
– Tão bom pai – disse um senhor ao que os três filhos fungaram uma lágrima e a viúva chorava.
– Não quero que soltem foguetes – disse ela a certa altura. – Ele não merece que façamos festa e a Santa há de concordar que a nossa dor é grande.
– Claro! – concordaram todos. – Não haverá fogos! – todos pensavam em seus próprios foguetes. – Rezaremos para que a Santa lhe dê proteção no outro mundo.
A hora passando, talvez só um foguetinho, pensaram…
– Ele ficou me devendo – disse o dono do armazém.
– Shihhh! Não é hora para isso – disse uma senhora de véu roxo sobre os cabelos brancos.
– A mim ele devia mais – disse o dono do açougue. – Há três meses não vejo um realzinho.
– Mas a mulher dele não deve estar sabendo, coitada – disse outra vizinha gorda e agitada. – Ela achava que ele era tão correto.
– Tão bom homem – disse o açougueiro.
– Tão bom pai – disse o dono do armazém.
A viúva, ouvindo qualquer coisa, levantou os olhos para os comerciantes e perguntou:
– Meu marido estava devendo aos senhores?
– Sim, quer dizer… – respondeu o dono do armazém. – Depois a gente conversa.
– Isso mesmo, a gente conversa depois – disse o do açougue.
– E é muito? – perguntou a viúva com cara de piedade.
– A mim, três meses de compras para a casa – disse o dono do armazém.
– Igual para mim – disse o açougueiro –, três meses de carne.
– Mas não pode ser – disse a viúva. – Ele sempre fora tão correto.
– Tão bom homem.
– Tão bom marido.
– Tão bom pai – disse outro e outra lágrima fora fungada pelos três filhos.
– Mas ultimamente… – disse a mulher gorda e se arrependera.
– Comadre sabe de coisa que não sei? – perguntou a viúva.
– Claro que não, comadre – respondeu a gorda. – Deus que me livre.
– Comadre? – disse a viúva em tom de pergunta.
– Depois a gente fala sobre isso – disse a gorda.
– Depois não – disse a viúva que parara de chorar e encarava o trio. – O que houve?
– Nada, comadre. Sabe, eu tenho uma sobrinha que queria tanto vir vê-lo, comadre. Coitada, nunca viu defunto.
– Mande que ela venha – disse a viúva sentando-se novamente chorosa.
A hora passando, o morto na sala, os fogos na cozinha e Nossa Senhora a tudo assistindo…
Entra então, a sobrinha da vizinha gorda, uma mulher escultural de trinta e poucos anos e todos olharam o belo corpo da “sobrinha”. Esta se aproximou do caixão, ao lado da viúva oficial e não aguentando começou a chorar agarrada na mão gelada e dura do morto.
– Por que você foi me deixa? – gritou ela de repente ao que todos sse calaram. – Você prometeu que não iria morrer nunca.
O espanto era geral. Ele não era tão bom homem, tão correto, tão bom marido, tão bom pai? O que era aquela “sobrinha” que ninguém conhecia?
– Senhora – disse-lhe um homem de meia idade que a segurou pelos ombros.
– Solta-me, deixe que eu me despeça do meu único amado.
– Amado?! – exaltou-se a viúva oficial. – O que você quer dizer com isso?
– Eu o amava tanto – disse ela aos prantos.
– Amava? – pergunta a viúva. – E ele?
– Ele dizia que me amava demais – disse ela suspirando.
– E você e ele?
– E nós dois… E nós dois? Nunca mais nós dois – desatou-se a chorar convulsivamente e os homens da sala a levaram da sala onde estava o morto para a cozinha onde estavam os fogos…
– Meu Deus! – disse a viúva que nessa hora duvidava de ser a oficial. – O que você fez? – perguntou ao marido morto.
– Com certeza nada, comadre – disse uma mulher vestida de preto. – Ele era tão correto.
– Tão bom homem – disse outra.
– Tão bom marido – disse outra a quem a viúva olhou estupefata.
– Tão bom pai – disse um homem calvo e pode-se ouvir que os três filhos fungaram outra lágrima.
A viúva não mais chorava. O morto na sala tinha um ar menos angelical. Os fogos na cozinha estavam esquecidos.
– Quase meio dia – disse a lavadeira da família.
– Temos que rezar – disseram outras.
– Pena não ter fogos – disse uma adolescente de olheiras.
– Não pode ter fogos – disse a mãe da adolescente de olheiras também de olheiras. – Ele morreu.
– Pois é, tão bom homem…
– Tão bom marido…
– Pera aí! – disse a viúva ainda ouvindo os gritos da “sobrinha” histérica. – Bom homem com dívida? Deve ter mais! Bom marido com outra? Pode ter mais. Bom pai? Deus sabe lá de quantos? – Os três filhos fungaram seco.
– Comadre, ele morreu – disse a gorda.
– E sua sobrinha está viúva também?
– Não é minha sobrinha – disse a comadre.
– Agora não me interessa – disse a viúva. – Quantas horas?
– Vinte para o meio-dia – responderam.
– Então soltem a metade dos fogos agora – disse a viúva.
– Agora? – perguntaram assustados. – Mas não é ao meio-dia?
– Soltem a metade e gritem: Viva!
– Viva a Santa? – perguntou
o açougueiro.
– Não, senhor. Viva que ele morreu. Estou livre desse sem vergonha. Estou livre desse salafrário.
– E a outra metade? – perguntaram.
– Soltem ao meio-dia, para a Santa. Ela merece. Mas se ela ajudar ele lá no além, ano que vem vai ficar esperando – concluiu a viúva.
Laizo, Artur. Antologia Lafaiete em Prosa e Verso; 2015:55-8.
Muito bom Artur !!+
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