DIÁRIO DO CONFINAMENTO – D 9 – Pão de Canela e Prosa
Pão de Canela e Prosa

DIÁRIO DO CONFINAMENTO – D 9

Diário do confinamento – D 23

O dia amanheceu nublado, mas as pessoas, me parece, estão em dias normais de vida: ruas cheias, trânsito começando a ficar enrolado e quase todo mundo sem máscaras.
Claro que a porta da loja de chocolates aqui em frente estava cheia de gente, tinha até fila. Ovo de Páscoa, no preço absurdo que é, é item de primeira necessidade. Absurdo. Mas cada cabeça sua sentença.
Como as festas religiosas viraram comércio, Páscoa, não interessa o motivo cristão – a maioria nem sabe o que se comemora na Páscoa -, sem ovo de chocolate não pode existir. Ainda mais a desse ano, todos os coitadinhos estão confinados em casa, precisam de Ovo de Páscoa. Natal é outra festa que não interessa o aniversariante, mas o presente que se dá ou que se ganha e, claro, a comilança que se arruma nesses dias.
Enfim, estamos no meio do tiroteio e ainda não conseguimos ver onde as “balas perdidas” – vírus – acertaram. O fogo cruzado no meio da rua, muitas vezes não nos mata e, assintomáticos, levamos a carga viral para infectar um parente, um amigo, qualquer pessoa que possa adoecer por essa pandemia. Muitas vezes, não teremos a doença, mas seremos o transporte para que ela se instale em outras pessoas e mantenha a disseminação desse pesadelo que estamos vivendo.
Ficar em casa é ruim? Volto a dizer que é sim! Gosto de sair e ver gente. Gosto de ir pras ruas e abraçar gente. Gosto de gente – isso é uma coisa inerente a quem faz área de saúde: gostar de gente. Mas, até porque sou médico, eu gosto de gente saudável, de gente que está nas ruas exercendo a sua plena capacidade de ir e vir. No momento atual não dá! Não podemos sobrecarregar o serviço de saúde.
As reportagens são muitas. Dizem que oitenta por cento da população vai se contaminar com o Corona vírus. Mostram a realidade e muita gente está morrendo pelo próprio ser maligno invisível. Morrem mais idosos. Quantas crianças e adolescentes o jornal notificou como mortes pelo covid19 só ontem? Alguém viu? Na Itália já morreram noventa e quatro médicos. É um dos países que não está dando conta de cuidar de seus mortos e é terrível ver caminhões do exército passando e levando os corpos para serem cremados em outros lugares. Isso me lembra das “valas comuns” onde foram enterrados tantos nas outras pandemias mundiais, onde foram esquecidos tantos nas grandes guerras mundiais. Deixar um ente querido no saco plástico na calçada de casa porque não aguentamos o cheiro da putrefação dentro de casa e não tem onde enterrar é coisa do Equador. Definir quem vai morrer e quem vai ser entubado e tratado é coisa da Espanha. Será que temos tantos caminhões assim, ou teremos forças para deixar no saco plástico nosso parente mais querido? Será que, como médico, eu ficarei impassível quando tiver que escolher quem vive e quem morre? Nossa! Que coisa de filme! “A escolha de Sofia” (USA, 1982) é um drama fantástico onde Sofia, polaca, presa em um campo de concentração nazista tem uma triste escolha que é forçada a fazer. Não quero brincar de “escolha de Sofia” quando tiver mais de um paciente em insuficiência respiratória e somente um ventilador mecânico. Quem não conhece o filme, sugiro ver. Muito bom.
Mas voltando ao confinamento, fique em casa! Procure fazer alguma coisa muito legal com seus entes queridos. Pode até ser um bom filme onde todos assistem juntos e discutem juntos depois. Que tal ler um bom livro – de preferência de um autor nacional – e depois discutir através das redes sociais com os amigos ou até mesmo com o próprio autor.
Nesse confinamento, eu escrevi muito. Li muito. Pintei. Pintei, não posso dizer que foi muito porque pintei apenas um quadro e queria pintar um por dia. Mas também eu queria ler um livro por dia e escrever mais um por dia. Não dá. Meu dia tem setenta e duas horas, mas mesmo assim, é impossível. Outra coisa que fiz muito foi comer. Uau! Coisas gostosas que podemos inventar com coisas que temos em casa e, na maioria das vezes, coisas baratas. Não há necessidade, para se comer bem, comer coisas caras e nem industrializadas.
De terça para quarta-feira eu tive um sonho muito louco e, como não vou perder a ideia, comecei ontem a escrever uma peça de teatro misturando a “Comedia dell’arte” com um vampiro. Onde estarão os meus vampiros nessa pandemia se não for rondando na minha cabeça e me dando um suporte magnífico.
Estamos com um projeto lindo na Liga de Escritores, Ilustradores e Autores de Juiz de Fora – LEIAJF – a declamação de poesias. Um membro declama a poesia do outro e publicamos no Instagram e Fanpage da Liga para alegrar quem está em casa confinado e precisando ouvir uma coisa legal. Hoje, fizemos uma poesia em que cada membro escreveu um verso. Vamos publicá-la para a Páscoa.
Estamos vendo e ouvindo dizer de muitos casais que estão a ponto de se separar, se já não o fizeram, porque não se aguentam dentro da mesma casa vinte e quatro horas por dia. Sinceramente, a culpa disso não é da pandemia.
Meus amigos, hoje é o vigésimo terceiro dia do meu confinamento. Só tenho saído para coisas extremamente fundamentais e para dar meus plantões no CTI da Santa Casa. Muitos pacientes me ligam e eu tento resolver o que posso por telefone, encaminho para onde devam ir, mas realmente estou cumprindo esse isolamento social. Eu sou médico e trabalho em um CTI. Quem pode afirmar que eu também não esteja contaminado e possa transmitir para meus pacientes em uma consulta eletiva. Portanto, entendam isso.
Hoje, vou fazer mais um plantão. Fiz essa escolha quando quis ser médico e é minha função curar quando posso, dar alento quando não posso curar e dar suporte quando não posso fazer muito. O profissional de saúde que hoje está mais em evidência, sempre foi aquele encarregado de sair na frente e ficar nas trincheiras das guerras levando tiro de onde não sabe que vem. Fala-se mais hoje em dia, sobre a atuação dos profissionais de saúde, mas sempre e sempre, foram eles, nós, que cuidamos das infecções e passada aquela ilusão de que médico era Deus – alguns ainda acreditam -, muitos profissionais de saúde já morreram na história do mundo contaminados de alguma forma.
Fiquem em casa mais um pouco. Tantas e tantas são as brincadeiras que podemos fazer on-line com nossos parentes e amigos. Tanta falta faz um abraço. Mas eu prefiro ficar sem abraçar alguém por um período de confinamento que vai passar, do que não poder abraçar nunca mais.
Aproveitem a Semana Santa e rezem. Orem. Façam um culto. Até feitiço serve. Clamem pelos seres iluminados que cada um confia e acredita e esperemos que essa nuvem negra passe.
Fiquem com Deus! Força e fé!

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Artur Laizo Escritor

Artur Laizo nasceu em 1960, em Conselheiro Lafaiete – MG, vive em Juiz de Fora há quatro décadas, onde também é médico cirurgião e professor. É membro da Academia Juiz-forana de Letras e da Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafaiete, Sociedade Brasileira de Poetas Aldravistas e presidente da Liga de Escritores, Ilustradores e Autores de Juiz de Fora - LEIAJF.

2 comentáriosDeixe um comentário

  • Mais um texto fantástico! Posso e devo falar por mim; talvez outras pessoas comunguem desta opinião: Muito obrigado por me ajudar com as palavras certas, no momento certo. Sou praticante de arte marcial japonesa, e nesta, existe um ditado: ” O professor aparece quando o aluno está pronto.” Muito obrigado professor. OSS

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