JARDEL – Pão de Canela e Prosa
Pão de Canela e Prosa

JARDEL

Jardel era pesquisador do laboratório de bioquímica da empresa e era muito dedicado. O rapaz de 36 anos era alto, esportista, com um corpo definido em horas de academia e dieta balanceada. Gostava de usar os cabelos cheios, porém não longos e os fios loiros contrastavam com sua pele bronzeada de sol. Seu trabalho era exaustivo e ele passava horas em pesquisa. Era um líder justo o que muitas vezes fazia com que o confundissem com tirano e prepotente.

A indústria farmacêutica que movimentava o laboratório agora tinha outro plano de ação e os pesquisadores do laboratório estavam se desdobrando em horário extra e novos estudos. Havia algo de secreto na pesquisa e o que acontecia ali era do conhecimento de poucos. Jardel liderava uma equipe de quatro bioquímicos que, como ele, se especializaram em genética humana.

Naquela noite, trouxeram uma amostra de um sangue que deveria ser analisado por Jardel e ele começou imediatamente a pesquisa. Seus homens queriam saber de quem era a amostra, mas nem ele mesmo estava ao par da origem daquele sangue. Sentou-se à sua mesa e começou a fazer os testes que deveria fazer na amostra.

Amilton sentou-se à mesa do café com os outros três colegas de pesquisa. Estava indócil para saber o que Jardel estava fazendo e porque ele não estava junto. Antônio, Márcio e Paulo comiam um hambúrguer e tomavam um suco.  Amilton tomava uma Coca-Cola e não comia nada.

_ O que você está pensando tanto, Amilton? – perguntou Paulo.

_ Nada não – foi evasivo ele. – Por que?

_ Porque você está muito quieto hoje – afirmou Márcio.

_ Eu estou pensando, gente – começou ele. – Jardel está escondendo alguma coisa da gente. Pode ser que esteja fazendo uma puta pesquisa e deixando a gente de fora.

_ Mas será? – perguntou Márcio. – Acho que ele não faria isso.

_ O que ele recebeu hoje? – perguntou Amilton. – Chegou pra ele uma caixa lacrada e ele se pôs a trabalhar nela. Acho que deveríamos perguntar para ele.

Amilton era o mais baixo do grupo. Era muito branco e tinha cabelos pretos que realçavam os olhos azuis. Era o típico homem desconfiado e criador de caso. Ele desconfiaria até mesmo de sua mãe se ela entrasse no mesmo ramo que ele. Marcio era negro e o mais novo do grupo. Devia estar com vinte e seis anos e apenas terminara a faculdade fora contratado para trabalhar na empresa. Desde que chegara, há dois anos, sofria sérias influências de Amilton. Paulo sempre tendera a ser o amigo de todos e se dava bem com todos os funcionários da empresa. Era casado com uma professora primária e ainda não tinha filhos. Antônio era o único a não dar palpites nas elucubrações de Amilton. Era o mais velho do grupo e aos quarenta e oito anos, esperava a vida passar e a aposentadoria chegar. Ressentia-se por ser comandado por um homem doze anos mais novo, mas não tinha nada pessoal contra Jardel.

_ Acho que vocês deveriam perguntar pra ele – sugeriu Antônio. – Vamos lá pra ver isso.

_ Mas será que ele vai nos contar o que é? – perguntou Amilton incitando os colegas.

_ Vai, uai – disse Márcio.

O grupo saiu do refeitório e subiu para o laboratório de pesquisa. Parecia que iriam detonar uma guerra. Iam calados, mas cada um pensando uma coisa diferente. Todos queriam saber o que Jardel estava fazendo de diferente que eles não estariam participando.

Entraram no laboratório e o chefe estava em sua sala, fechado, com uma mesa atulhada de frascos e havia sobre a bancada um frasco com uma amostra diferente. Amilton bateu e Jardel permitiu que eles entrassem.

_ Alguma novidade, chefe? – perguntou Amilton.

_ Não, Amilton. Por que? O que está acontecendo?

_ Não sabemos, chefe – continuou Márcio. – Queríamos saber o que está acontecendo nós. Há algum projeto que não fazemos parte?

_ Claro que não – respondeu ele. – Eu recebi uma missão hoje para analisar esse material aqui – mostrou o frasco com sangue, – mas iria incluir todos vocês no projeto.

_ E o que é isso, Chefe? – perguntou Márcio.

_ Não sei ainda. É sangue, mas não é humano. Não sei de que é.

_ Como assim, chefe? – Perguntou Amilton. – E que tipo de pesquisa você está fazendo?

_ Primeiro analisando as células existentes nesse líquido e depois procurando tipo, coagulação… – explicou Jardel.

_ Podemos ver? – perguntou Amilton.

_ Claro, Amilton – Jardel observou a expressão de dúvida no rosto de seus funcionários e perguntou: – O que está acontecendo com vocês?

_ Nada, chefe – respondeu Amilton olhando no microscópio a amostra do sangue que Jardel estava vendo. – É que estamos ficando meio preocupados em não fazer parte das suas pesquisas. Você está querendo tirar a gente do plano aí?

_ Como assim, Amilton? O que vocês estão pensando?

_ Que você quer tirar proveito do laboratório e deixar a gente pra trás – explicou Marcio. – Queremos fazer parte dessa pesquisa aí, meu caro.

_ Mas tudo que fazemos aqui é em conjunto – exasperou-se Jardel. – O que vocês querem?

_ Queremos o seu posto – disse pela primeira vez Antônio. – Queremos que tudo entre nós seja dividido igualmente inclusive os louros pelas descobertas novas.

_ Queremos ver esse sangue aí, chefe – disse Paulo. – De quem é esse sangue?

_ Não sei – Jardel começou a temer a ação dos colegas. – Como disse é um sangue que mandaram que eu examinasse e eu não sei de onde tiraram. Sei que não é humano e também não achei nenhum animal que possa ter esse tipo de célula.

_ Quem te mandou essa amostra? – perguntou Amilton com o frasco nas mãos.

_ Cuidado com isso, Amilton. Não sabemos se possui alguma coisa contagiosa – pediu Jardel.

_ Chefe, você já teve a sua amostra para análise e agora ainda tem muito sangue aqui. Mandaram uma boa quantidade – afirmou Amilton.

_ Sim, mandaram trezentos mililitros – explicou Jardel.

_ Querem uma pesquisa e tanto. Eu vi aqui no micro que não é humano. Você vai nos dizer de quem é? – perguntou Amilton.

_ Eu não sei! – explodiu Jardel. – Saiam da sala e me deixem trabalhar em paz. Voltem para o que vocês estavam fazendo.

_ Não antes de também experimentar isso – disse Amilton ainda com o frasco de sangue nas mãos.

_ Mas como vamos fazer? – perguntou Jardel.

_ Você não, chefe. Nós vamos fazer. Agarrem-no – ordenou aos outros.

Contra a vontade de Jardel que tentou lutar, os outros três rapazes derrubaram o loiro no chão e o imobilizaram. Eles estavam todos excitados pelo momento e a força era triplicada. Jardel lutava para se libertar e em dado momento, para não ter problemas, Amilton aplicou-lhe uma injeção com um sedativo que o fez dormir imediatamente.

_ Que loucura é essa, gente? – perguntou Antônio. – Estamos ficando loucos. Ele é nosso chefe.

_ Loucura é ele não dividir conosco o seu trabalho, Antônio – justificou-se Amilton. – Eu quero ver esse sangue.

_ O que faremos com ele? – perguntou Márcio.

_ Vamos coloca-lo na maca na enfermaria aqui do lado e amarra-lo lá. Essa injeção de Midazolan que lhe apliquei vai deixa-lo sedado por três horas no máximo – explicou Amilton.

Os companheiros de Amilton, que assumia uma liderança na cabeça dos outros há muito tempo, obedeceram suas ordens. Colocaram Jardel na maca. Arrancaram-lhe a roupa, deixando-o só de cuecas e contiveram o chefe.

Amilton olhava o sangue no microscópio e olhava no frasco. Parecia que o sangue estava vivo. Havia alguma coisa naquele líquido que o fazia ser diferente do sangue dos humanos. Ele não sabia o que era. Não sabia o que fazer com aquele líquido. Abriu o frasco e o odor era de sangue. A textura do líquido era de sangue. Todos os reagentes que tinha conhecimento, Jardel já havia usado e não tivera nenhuma conclusão. O que fazer com o sangue?

_ Eu vou aplicar esse sangue nele – falou alto para que todos ouvissem claramente a sua intensão.

_ Como que é? – perguntou Marcio.

_ Você vai o que? – perguntou Antônio.

_ Isso mesmo que vocês ouviram. Não há nada de conclusivo na pesquisa dele aqui. Quem sabe uma pesquisa in humanus não nos dá uma vertente diferente?

_ Você enlouqueceu de vez, Amilton – disse Paulo tentando fazer com que o amigo desistisse de sua ideia. – Ele vai morrer se você fizer isso.

_ Eu não quero participar de um assassinato – desabafou Márcio. – Isso é loucura.

_ Estamos juntos ou não? – perguntou Amilton. – Tudo tem que ser feito por todos. Não adianta tentar escapar agora. Vocês estão tão enrolados quanto eu.

_ Mas, Amilton – conjecturou Antônio, – se ele morrer não teremos como escapar de um assassinato.

_ Não temos mais ninguém aqui no laboratório. Podemos dizer que ele quis experimentar em si mesmo e que quando arrombamos a porta ele já estava morto – explicou seu plano Amilton.

_ De certa forma, isso pode dar certo – aceitou Marcio.

Cientes do risco e do resultado que poderiam obter com aquela experiência maluca, acabaram concordando, ou por não gostarem de Jardel ou por obediência a Amilton. Instalaram um monitor cardíaco para observar pulsação e pressão arterial.

_ Peguem uma veia calibrosa – ordenou Amilton.

Veia calibrosa no braço forte de Jardel era fácil. Em pouco tempo um soro corria na sua veia. Amilton abriu o frasco do sangue e aspirou vinte mililitros em uma seringa de plástico. Aproximou-se do chefe e aplicou lentamente todo o conteúdo da seringa na veia do homem deitado na maca. Enquanto fazia isso, parecia que os olhos de Amilton brilhavam. Talvez fosse apenas excitação.

Os outros entre temerosos e curiosos, olhavam para o corpo do chefe e para o monitor. O ritmo era regular no início. A pressão arterial também estava normal e eles não observavam nada. Ocorreu um desapontamento entre os pesquisadores do laboratório e Amilton falou primeiro:

_ Não vai acontecer nada.

_ Isso é loucura – continuava a repetir Marcio.

_ Vamos sair daqui? – perguntou Antônio.

_ Claro que não – respondeu Amilton. – Vamos observar.

Em silêncio observavam o peito musculoso e cheio de pelos loiros em um ritmo respiratório normal. A cor da pele do chefe também parecia que estava normal. Um apito do monitor mostrou que o ritmo cardíaco mudou para uma taquicardia sinusal, regular, porém a quase duzentos batimentos por minuto. O sangue de Jardel passava por uma transformação e corria mais depressa nos vasos. Mais um pouco e teriam que desfibrilar o pesquisador. A pressão arterial subiu e de repente, desceu a ponto de caracterizar um choque e o coração de Jardel parou.

Eles ficaram assustados e Márcio iria começar a massagem cardíaca externa quando viu que os batimentos cardíacos de Jardel voltaram ao normal, a pressão arterial voltou ao normal e a pele começou a escurecer. A pele atingiu uma cor bronzeada e voltou a ser a pele branca e cheia de sardas do chefe que eles conheciam. O corpo de Jardel passava por uma mudança e começaram a observar que suas mãos aumentavam de tamanho. Os braços a seguir se tornavam mais fortes e o corpo todo se seguiu a essa transformação tornando-se maior e muito mais forte. Ele quase não cabia na maca da enfermaria. O rosto foi o último a se transformar e permaneceu com a beleza anterior de Jardel, porém era maior e muito mais másculo.

De repente, Jardel abriu os olhos. A cor era diferente de antes. Estavam vermelhos e pareciam ter luz própria. Ao abrir os olhos, Jardel iluminou a sala com uma luz avermelhada. Os homens ao lado se afastaram e temeram pela vida. Amilton pensou em correr pela sala e sair pela única porta que tinha na sala ao lado. Jardel percebeu isso e com a mente fechou a porta. Por mais que tentasse, Amilton não conseguiu abrir a porta. Desesperado olhou para a figura imensa que se levantava da maca arrancando as amarras com um simples movimento. Nada poderia segura-lo naquele momento. Márcio tirou da cintura uma arma e atirou no chefe, ou o que quer que fosse aquilo ali a sua frente. Um baque e Jardel manteve sua postura em pé inabalável. Marcio deu outro tiro e os outros estavam apavorados. Nenhum deles sabia que Marcio portava uma arma no trabalho. Por que seria? Jardel recebeu no peito quatro tiros que não lhe fizeram nenhuma alteração. As balas foram expulsas e as feridas cicatrizaram imediatamente. Eles estavam atônitos e ao olharem para Amilton viram a imagem do terror. Ele estava branco, desesperado e todo molhado de urina. Soltara os esfíncteres de medo. Jardel também viu essa cena e riu. Ao rir deixou aparecer um par de caninos muito grandes e brilhantes que brilharam à luz do lugar.

_ Então é assim que tudo deve terminar – disse ele agarrando Amilton pelo pescoço e levantando-o até a altura de sua face. – Você sempre causando problemas.

_ Não, chefe, não é isso…

Amilton não conseguiu terminar sua desculpa, o vampiro que o segurava mordeu seu pescoço e sugou seu sangue. Estava faminto desde a transformação e precisava de sangue. Não havia entre os quatro nenhum sangue que lhe interessava, sentia pelo cheiro, mas eram eles que estavam ali para acabar com sua sede. Deixou o corpo de Amilton inerte no chão, morto e partiu para os outros. Eles estavam paralisados pelo medo e pela força mental que Jardel começava a aprender a usar. Marcio foi o próximo a servir seu sangue ao vampiro sedento. O negro estava apavorado, mas sabia que sua arma não funcionaria e que o seu fim estava perto. Olhava o corpo morto do parceiro que tanto o intimara a fazer coisas ruins e culpou-o pelo seu fim.

_ Você poderia ter agido diferente, Márcio – a voz de Jardel era grossa e pesada.

Jardel passou a língua no pescoço do negro para aterroriza-lo ainda um pouco mais cravou suas presas nos vasos sanguíneos do rapaz. Se sugasse tudo poderia terminar com sua sede. Ele precisava matar todos eles. Eles o transformaram naquela coisa que ele ainda não entendia o que era. Mordia e sugava sangue por necessidade e por puro instinto. Era a sua forma de sobreviver. Deixou o corpo do rapaz caído, morto por cima do outro cadáver. Paulo seria o próximo, mas com toda aquela cena que assistia estava em um canto da sala todo vomitado. Os olhos abertos e o terror estampado em sua face. Paulo tinha trinta anos, uma barriga saliente de cerveja todo fim de semana e completa falta de exercício físico. O moreno cor de jambo estava branco de terror. O fato de ter vomitado não interferia em nada no             ataque do vampiro. Jardel prendeu o corpo do rapaz com as duas mãos e mordeu o único lugar limpo do pescoço do rapaz. A princípio, Paulo relutou, mas depois se entregou ao prazer de ser sugado por um vampiro. Morreu sorrindo e foi também jogado por cima dos outros cadáveres.

Antônio queria morrer. Estava em um quadro de depressão profunda e não conseguia se reerguer. Era um homem sozinho e, em toda vida, as pessoas que passaram por ele se foram ou morreram. Trabalhava por ter que sobreviver. Não tinha mais esperanças de ter uma vida boa.

Jardel conseguiu ver isso na mente do homem e percebeu que também poderia ler a mente das pessoas. Ele conseguia fazer um monte de coisas que não fazia antes. Estava se sentindo muito bem.

Antônio não poderia sobreviver. Era preciso que ele não deixasse provas do que acontecera ali. Não havia câmeras naquele lugar e ninguém saberia o que ele fizera. Agarrou Antônio pela camisa e sorriu ao mostrar-lhe as presas e os olhos vermelhos luminosos. O homem não viu mais nada. Jardel bebeu todo o seu sangue e o deixou morto sobre os outros. Sabia que eles eram o mal e que o teriam matado por simples ganância. Ele correra riscos e tivera a sorte, ou o azar, de receber a dose necessária para se transformar em vampiro. Tivera sua transformação completada quando bebera o sangue dos quatro rapazes. Ele agora era um vampiro, era muito mais forte, muito melhor e estava pronto para sua nova vida. Ele sabia também de quem era o sangue que recebera. Ele iria procurar o vampiro mais tarde.

Precisava de roupas. As suas roupas estariam muito apertadas para ele. Mas serviriam para ele chegar à sua casa. Amanhã ele estaria de volta ao trabalho de forma diferente.

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Artur Laizo Escritor

Artur Laizo nasceu em 1960, em Conselheiro Lafaiete – MG, vive em Juiz de Fora há quatro décadas, onde também é médico cirurgião e professor. É membro da Academia Juiz-forana de Letras e da Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafaiete, Sociedade Brasileira de Poetas Aldravistas e presidente da Liga de Escritores, Ilustradores e Autores de Juiz de Fora - LEIAJF.

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