JUVENAL ENCONTRA A MORTE – Pão de Canela e Prosa
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JUVENAL ENCONTRA A MORTE

Juvenal sempre que entrava na garagem do seu prédio achava que estava muito escuro, mesmo que fosse dia e o sol do lado de fora brilhasse com todo seu esplendor. Seu carro ficava em uma das últimas vagas e ele tinha que andar muito entre diversos carros estacionados. Ele já conversara com o porteiro para ver a solução para aquela escuridão, mas o homem mais velho na portaria ora dizia que iria falar com o síndico, ora dizia que estava faltando uma lâmpada, mas que ele iria consertar rapidinho.

Naquela tarde, início de noite, Juvenal chegou com o seu carro e entrou na garagem. Parecia que estava mais escuro que o normal, ou o normal seria mesmo aquela escuridão. Não ouviu nenhum barulho, nem mesmo o da rua tão movimentada. Dirigindo até a sua vaga, teve a sensação de estar dirigindo por quilômetros. Estacionou e saiu do carro. Ele teve então uma sensação de que estava sendo observado e quando olhou na direção onde achava ter alguém, viu uma sombra que correu para um lugar mais escuro ainda.

_ Quem está aí? – gritou ele a plenos pulmões.

Não houve respostas e ele achou que deveria estar cismado com a escuridão, ou mesmo ficando louco. Sorriu e se dirigiu para o portão de saída. Teve, mais uma vez, a sensação de caminhar por quilômetros e no meio do caminho teve novamente a impressão de estar sendo vigiado por alguém. Não quis saber, apressou o passo e passou pelo portão, fechando-o a chave depois.

Subiu de elevador até o seu apartamento no nono andar e, depois de trancar a porta da entrada, respirou, aliviado. Estava em casa! Tomou banho, viu um pouco de televisão e foi para o quarto mais tarde dormir. Era essa a sua rotina todos os dias.

Juvenal era um homem sozinho. Não se casara, não tivera filhos, parentes: – ele não gostava e não os procurava. Não pensava em namorar, achava as pessoas muito difíceis e ninguém iria se adaptar à sua vida e aos seus costumes. Dormiu o sono pesado que o calmante sempre lhe dava, sonhou muitas coisas ruins que não se lembrou, mas acordou assustado e agradeceu ao despertador por tê-lo tirado do sonho.

A rotina da manhã também era a mesma: a mesa posta para ele, o café que ele mesmo fazia e o pão de forma com manteiga e uma fatia de queijo fina, depois o banho da manhã, o terno diferente do dia anterior, porém da mesma cor e estilo e o cabelo penteado com um creme que não deixava nenhum fio fora do lugar. Ele estava pronto para ir trabalhar.

Saiu do apartamento e entrou na garagem. A sensação do dia anterior voltou a assombra-lo, porém a garagem estava mais iluminada e havia pessoas transitando a pé ou com seus carros. Alguns até arriscavam um bom dia – ele jamais respondia.

Na saída da garagem para a rua quase atropelou uma velha que caminhava com dificuldade e acabou brigando com a mulher.

_ A senhora devia prestar atenção por onde anda. Onde já se viu uma velha como a senhora andar na rua sozinha? Vai morrer atropelada e não demora.

A velha tentava se explicar, mas ele não deixava. Ela tentava se desculpar e ele a ameaçava com outros impropérios.

_ Eu só espero que não seja eu que vá atropelar a senhora. Vai dar um problema muito grande na minha vida e ainda por cima, imagina, vai sujar meu carro e amassar a lataria.

A velha de “saco cheio” da sua falação, fez um gesto desprezo, afastou-se para o lado e saiu claudicando pelo seu caminho.

_ E não passe aqui de novo – gritou ele pela janela do carro.

Acelerou e saiu a toda velocidade. Os outros carros na rua que saíssem de sua frente. Chegou ao escritório onde trabalhava e sua mesa estava arrumada como ele deixara na véspera, porém com toda a papelada com a qual ele teria que se ocupar durante o dia. Era sempre assim, ninguém falava com ele e ele não falava com ninguém. Ninguém o suportava e ele não queria contato com ninguém ali. Continuava empregado naquele escritório porque o pai dele fora amigo do dono e por isso mesmo, em respeito à morte do amigo, o patrão mantinha o seu emprego.

Saiu depois de todo mundo. Fechou suas gavetas e deixou a mesa arrumada como fazia todos os dias. Apagou as luzes do escritório e desceu as escadas. O porteiro do prédio ousou dar boa noite e ele nem olhou para o homem. Entrou no seu carro e saiu do prédio para a rua. Teve a sensação de ver a mesma mulher que quase atropelara pela manhã, mas sacudiu a cabeça dizendo-se que era impossível. Mas a imagem dela voltou à sua mente e ele pensou que quase poderia tê-la matado. Quem manda ficar andando pelas ruas sem se aguentar? Uma velha como aquela tinha que ficar presa em casa. De preferência em um asilo, pensou.

Chegou ao seu prédio. A porta da garagem foi aberta com o controle remoto e ele entrou. Quando a porta da garagem se fechou, pareceu-lhe que desligaram o som do mundo. Havia um silêncio muito estranho e estava tudo tão escuro que ele teve que ligar os faróis. Ele estava arrepiado e a sua vaga era a dezenas de quilômetros de distância de qualquer ser vivo. Ele estava sozinho e no escuro. Será que estava sozinho mesmo?

Deixou o carro na vaga e trancou as portas. Começou a andar pelo caminho de volta até o portão do interior do prédio e ele estava sendo seguido. Não era simplesmente uma sensação. Havia alguém ali dentro e ele podia escutar os passos a dez metros atrás dele. Quem seria?

_ Quem está aí? – perguntou alto, porém não parou de andar.

Como não teve respostas, ele apressou o passo e começou a ver o portão que o separava daquele espaço escuro para o interior do prédio. Começou a correr e percebeu que quem o seguia também corria. Pegou o molho de chaves e escolheu a chave que abria o portão pela ordem em que fora colocada no chaveiro. Abriu o portão e passou por ele. Correu para o elevador, mas ele estava muito alto e iria demorar a chegar onde ele estava. Pensou nas escadas. Pelo menos ali tinha luz. Começou a subir os degraus, no começo com uma velocidade que ele imaginou aguentar até o seu andar, depois mais devagar e com dor nas pernas. Chegou enfim, ao seu andar e quando adentrou o corredor que ele teria que caminhar até a porta do seu apartamento, as luzes piscaram. Novo arrepio e o suor do esforço físico, nesse momento, foi aumentado pelo medo que sentia. Abriu a porta e quando começou a entrar foi jogado dentro do cômodo por uma força descomunal. Pareceu-lhe que fora atropelado por um trem.

Ele caiu no chão e já começava a tremer de medo. Ele estaria sendo assaltado, era isso? Será que o ladrão estava dentro da sua casa. Ousou virar-se e não viu nada. Não havia uma pessoa dentro de seu apartamento. Ele se levantou e olhou a roupa, não rasgara o terno, não sujara nada. Sua maleta estava jogada em um canto, ele a pegou e colocou em cima da mesinha da sala como todos os dias. Havia algo estranho em sua casa. Ele morava naquele apartamento há vinte anos. Havia alguma coisa fora do lugar. A porta da rua ainda estava aberta e ele foi até lá. Olhou para o corredor vazio e entrou trancando a porta.

Ouviu então uma rizada de mulher.

_ Quem está aí? – perguntou aterrorizado.

Novamente uma rizada e um lufar de vento que passou por ele. As janelas estavam trancadas, não poderia haver vento.

_ Quem está aí? – perguntou novamente quase aos prantos.

_ Ninguém – respondeu a voz que antes gargalhava. – Para você eu não sou ninguém.

_ Quem é você? – gritou ele.

_ Eu sou todo mundo que você maltrata e humilha – a voz continuou. – Eu sou o mendigo que passa fome e você não ajuda, eu sou o empregado da firma que você não cumprimenta, eu sou o porteiro do seu prédio que você nem sequer sabe o nome.

_ Eu sei… – balbuciou ele.

_ Não, não sabe. Você é uma pessoa infeliz que vive procurando a morte. Você quer morrer e tem medo de morrer. Você não gosta de ninguém e ninguém gosta de você. Você matou o seu pai de desgosto.

_ Eu não! – gritou ele. – Aquele velho idiota se matou porque não prestava pra mais nada.

_ Prestava sim – discordou a voz. – Ele tinha sessenta anos e sofria com a morte da esposa e com o filho idiota que tinha. Você conseguiu fazer com que sua vida ficasse pior ainda e ele não viu saída.

_ Ele se matou porque quis ficar livre de mim. Ele me odiava.

_ Mas todo mundo te odeia, Juvenal. Todas as pessoas com que você convive e odeia, também te odeiam. Você está só no mundo porque você odeia o mundo, odeia as pessoas e odeia você mesmo.

_ Quem é você? – gritou ele novamente.

_ Eu vim te buscar, Juvenal. Chega dessa vida sem vida, desse ódio fervendo nas suas veias, chega desse rancor preso no coração, chega de fazer mal para as pessoas.

_ Eu não faço mal pra ninguém…

_ Você não faz bem para ninguém. Você é um ser inútil e desprezível. Eu vim buscar você.

_ Não, eu não quero morrer.

_ Você não vai morrer, Juvenal. Você vai para um lugar cheio de ódio e rancor, cheio de sombras e de medos. Você vai para o inferno, Juvenal.

_ Não – disse ele andando pela sala em direção à sacada. – Eu vou pedir ajuda e alguém há de vir me ajudar.

_ Não virá ninguém, Juvenal. Todo mundo odeia você.

_ Não, eu vou gritar.

Abriu a porta que dava para a sacada do apartamento e uma lufada de ar frio entrou fazendo com que ele se arrepiasse de novo. Passou para a sacada e ouviu novamente a gargalhada dentro da sua sala. Estava aterrorizado e até para gritar não tinha voz. Olhou para o interior da sala e viu pela primeira vez o que o seguia. A figura demoníaca no centro da sua sala com olhos vermelhos o fez esfriar. Rezar? Ele não sabia rezar e não acreditava em Deus. O que estava dentro de sua sala aproximava-se lentamente de onde ele estava. Ele sentia o coração batendo na garganta. Sentia um terror alucinado e gritou. Gritou como nunca havia gritado na sua vida.

O grito foi tão alto que o porteiro ainda conseguiu ver o corpo de Juvenal caindo da sacada e se esborrachando do chão. O sangue espalhou rapidamente tingindo de vermelho o cimento, as paredes e o terno impecavelmente escolhido para o dia.

Vizinhos disseram que ouviram Juvenal falando sozinho. Logo depois que ele caiu, ouviram uma rizada e a sua porta abrir-se e fechar-se sem ninguém passar por ela.

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Artur Laizo Escritor

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