O ALVARÁ – Pão de Canela e Prosa
Pão de Canela e Prosa

O ALVARÁ

Alvará

Depois de dias esperando a liberação de um alvará para realizar um evento de saúde na praça da cidade, eu fui ao órgão competente procurar a resposta.

– Olá, disse o rapaz velho conhecido de todas as semanas que eu procurei para ter a resposta do alvará, tudo bem?

– E aí? Alguma resposta?

– Uai, já saiu daqui e já está no setor que vai liberar a petição.

– Ah, é? E eu faço o que?

– Vai ter que ir lá buscar a autorização. Já tá tudo certo com eles lá.

– Legal, obrigado.

Eu saí debaixo de um sol escaldante e fui em direção à tal secretaria da prefeitura que liberaria o alvará. Há três meses eu entrara com o pedido de licença na prefeitura para realizar um evento de saúde com alunos da faculdade dos cursos de saúde e toda semana eu fui ao mesmo rapaz e cobrara alguma resolução e a resposta sempre fora: – O processo está andando. Falta o chefe assinar. Precisa só de mais um visto. Entre outras coisas.

O evento seria o maior que o grupo realizaria em toda a sua existência e eu estava empolgado com a repercussão da ação de saúde. Precisaria de várias coisas pra realizar o evento e já conseguira: mesas, cadeiras, balanças, aparelhos de pressão, glicosímetros, fitas de glicemia e lancetas, manovacuômetro e bocais descartáveis, pessoal disposto a trabalhar na manhã do sábado e atender de graça um monte de gente. Eu obtivera apoio de várias instituições e a imprensa fora avisada e já começara a notificar.

Enfim, eu cheguei ao setor da prefeitura responsável pela liberação do alvará. Segundo andar. Senha. Observei as pessoas que esperavam pra serem atendidas e, principalmente, observei a simplicidade e a humildade delas. Um homem atendia um pobre popular ignorante de seus direitos e lhe dizia:

– Não pague o IPTU, meu senhor! O plano do governo é muito injusto e EU fiz um projeto de lei que vai mudar isso. EU resolvi rever a lei e EU acho que tá tudo errado. EU encaminhei esse projeto de lei pra prefeitura, mas o prefeito só vai assinar ele em 2015. Mas EU te falo, meu amigo, você não paga não. EU conheço bem casos iguais ao seu e vai ter uma anistia maior depois que o MEU processo for liberado na câmara. EU te falo isso como amigo. EU sou seu amigo.

O pobre coitado do contribuinte estava sendo enganado por um mané, funcionário público típico, desses que se acham superiores aos seus superiores e olhava o sujeito a sua frente admirado. Eu esperava que ele falasse: EU serei candidato na próxima eleição.

Fui chamado por uma senhora que era responsável pelo atendimento do meu problema enquanto percebia que o pobre coitado enganado e devedor de IPTU saia satisfeito depois de cumprimentar pegando na mão de Sua Excelência o EU. Outro pobre coitado sentou-se à frente do EU e o SEU telefone tocou: – Olá, meu querido. Que bom que você ligou. Precisamos mesmo conversar. … Eu gosto muito de você e da sua família. … Claro, pode falar. … Mas a gente precisa conversar mesmo sobre aquela multa. …

Eu observava o contribuinte parado na frente dele e ele ate jogou a cadeira pra trás pra sua conversa particular no meio do expediente. Enquanto a mulher na minha frente procurava resolver o meu problema, procurando no computador o número do meu processo, o EU continuava ao telefone com o amigo.

– Mas não está aqui, respondeu-me ela. Olha aqui no sistema, continua lá na prefeitura mesmo. Está aqui no sistema, olha.

Olhei a tela do computador e vi que estava no setor de origem ainda.

– Mas o rapaz olhou nos livros dele lá e viu que tinha saído de lá, disse eu.

– Mas não saiu. Ele é muito burro, tem que olhar no sistema e não nos livros.

– E aí? Perguntei.

– Uai, vá ao terceiro andar, pode ser que esteja lá. Procure o rapaz da recepção lá que ele pode resolver pra você. Se estiver lá!

Nisso percebi que o EU tinha acabado a ligação particular no meio do expediente, que durou quinze minutos, marcados no meu relógio, e se dirigiu ao pobre contribuinte, talvez mais um devedor de IPTU.

– Desculpe-me, mas era uma ligação urgente.

Subi ao terceiro andar e conversei com o rapaz da recepção. Depois de contar-lhe toda a trajetória do processo todo ele me respondeu: – Mas ele é muito burro, tem que olhar no sistema e não nos livros. Volte lá!

Voltei ao setor de origem e entrei na sala do João, o rapaz que me atendera toda semana que eu fora lá em busca do meu alvará e ele me sorriu: – E aí? perguntou.

– Uai, respondi eu, eu fui lá e fui atendido por uma senhora no segundo andar e um rapaz no terceiro andar e eles me disseram que você é muito burro e tem que olhar no sistema e não nos livros.

– Eles disseram isso?

– Sim, disseram, disse eu, certo de que implantara a discórdia entre eles. E me mandaram de volta. Disseram que o processo está aqui.

– Mas aqui não está, disse ele. Vamos ver no livro. Olha aqui o processo, repetiu o número que jamais vou esquecer, foi encaminhado para o setor que encaminha para o diretor que assina e libera pra encaminhar para o setor que libera então o documento. A gente encaminha.

Uma senhora que estava do lado lhe disse: – Por que você não procura no setor de expediente que encaminha esses documentos?

– Ah é, disse ele, vamos até lá.

Saímos ele e eu e fomos ao segundo andar do prédio, estávamos no terceiro, procurar a tal secretária que encaminha o processo para o setor que encaminha para o encaminhador que enfim desencaminha tudo. A pobre coitada da garota que estava no setor não sabia o que era setor. Tinha um pacote de recibos que ao ver o livro do João, derrubou o seu pacote de recibos soltos e desordenados sobre uma mesa cheia de outros papeis e começou a procurar, o que eu não sei. João olhava pra ela e mostrava o livro e repetia o número do processo, ela olhava pra ele e dizia que não sabia de nada. Ele insistia que o processo saíra da sua sala e ela insistia que não chegara à sua. Onde estava o processo? O Evento era dali a três dias, sendo que na véspera do evento, o setor que liberava ou que encaminhava ou que não fazia nada não iria funcionar por motivos não interessavam quais. Nessa busca por onde estaria o processo alguém sugeriu: – Por que não conversa com a secretária do superintendente que pode dar uma ideia do que pode estar acontecendo e como resolver?

Tudo bem, vamos ao fundo do corredor do terceiro andar procurar pela secretária do chefe. Fomos todos João, o sujeito que sugeriu procurar a secretária e a garota que não sabia o que fazer e eu. Entramos na sala da secretária do chefe todo poderoso e era uma pessoa minha conhecida e amiga:

– Olá, o que houve? perguntou-me ela.

– Pois é, eu estou aqui com um problema sério porque quero fazer um evento de saúde na praça principal da cidade e entrei com a papelada para liberaração do alvará há três meses.

– Uai, e aí? perguntou-me ela.

– Uai, aí, não foi descaso meu, disse-lhe humildemente eu, estou vindo aqui toda semana, não é João?

– É sim, é sim, disse o abobalhado rapaz.

– E o meu processo sumiu, disse-lhe eu.

– Como sumiu? perguntou-me ela.

– Eu vim hoje buscar a liberação do alvará e no trânsito dele entre o terceiro e o segundo andar ele desapareceu.

Ela olhou para os dois funcionários e perguntou o que havia acontecido.

– Foi encaminhado para o setor que encaminha, respondeu o atrapalhado João.

– Não está comigo esse processo, respondeu a moça perdida no tempo e espaço.

– Mas onde anda esse processo? perguntou ela.

– Não sei, respondi eu. O problema é que sem alvará eu não posso fazer o evento, não é?

– Não, não pode! disse ela enfática.

– E o que que eu faço com a imprensa? A Rede Globo já avisou que vai à praça no sábado, os jornais da cidade já estão noticiando e eu já dei uma entrevista para o jornal. Que faço eu agora? perguntei mais sofredoramente possível. Aviso à imprensa que o evento foi cancelado porque o alvará não foi liberado?

– Não, isso não, disse ela. Temos que resolver isso.

– Mas eu tenho uma cópia do processo, disse Joâo. Tudo que a gente recebe e encaminha tem uma cópia.

Eu imaginei aquele monte de papel em uma era computadorizada com cópia pra que? Mas tudo bem, quem sabe ali não seria a minha salvação?

– Se a gente trouxer uma cópia será que ELE não assina hoje ainda? perguntou o João.

– Traz, disse ela. Vamos ver o que posso fazer.

– Que faço então? perguntei a ela.

– Vou dar um jeito. João traz a cópia e vamos resolver isso.

Agradeci e saí daquele setor com ódio da incompetência alheia. Serviço público é assim mesmo, eles mesmos me disseram. Mas o descaso do serviço público é também reflexo da incompetência dos políticos e dos órgãos governamentais desse país. Nada funciona bem porque temos um monte de EUs que enganam um monte de pobres coitados contribuintes devedores de IPTU e que acham que precisam desses funcionários que não trabalham direito porque ninguém vai cobrar dele o serviço que ele tem que fazer e ele não será demitido porque é concursado e vai ficar ali até morrer enganado todo mundo e fazendo um-não-sei-o-que de falcatruas e mais incompetências se juntando.

O evento saiu e foi um sucesso. Mas resta sempre a dúvida: Quem nesse país está de todo correto: o EU e todos os outros cúmplices do seu descaso, ou o contribuinte ignorante, ou todo mundo está vivendo numa imensa tigela de podridão que não terá mais fim? Não sei!

CRÔNICA – Publicada na Antologia Lafaiete em Prosa e Verso 2014:44-7.

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Artur Laizo Escritor

Artur Laizo nasceu em 1960, em Conselheiro Lafaiete – MG, vive em Juiz de Fora há quatro décadas, onde também é médico cirurgião e professor. É membro da Academia Juiz-forana de Letras e da Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafaiete, Sociedade Brasileira de Poetas Aldravistas e presidente da Liga de Escritores, Ilustradores e Autores de Juiz de Fora - LEIAJF.

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