O MENDIGO – Pão de Canela e Prosa
Pão de Canela e Prosa

O MENDIGO

O PACTO – PARTE 4

Duas mortes em troca de saúde dos filhos e dinheiro – isso era exatamente o que estava acontecendo com Estêvão. Ele trocou a alma dos pais para ter dinheiro. O demônio que o ajudava, cobrava caro, mas não deixava passar. Primeiro o velho Jair que estava acamado e não era mais que um fardo que tinham que carregar para sempre, depois a mãe de Estêvão que, caindo em profunda depressão, em cinco anos apresentou um quadro de demência senil e paralisia dos movimentos musculares. Ela também era um peso nas costas da família inteira. Somente o x sentiria a perda da avó. Somente ele que estava vivo pelo mesmo motivo da morte da velha sentiria a perda.
Estêvão não se importou com a morte da mãe. O sangue espalhado na cozinha e o corpo frágil da velha senhora que parecia bem menor do que foi na sua vida ativa, dava até certo prazer ao filho.
Ele olhava a cena e não dizia nada, mas sentia-se livre do peso que carregava nos últimos anos.
A família entrou em luto, mas Estêvão não se abalou. Continuou a dirigir a rede de restaurantes e todos os empregados notaram a mudança do comportamento do patrão. Ele estava mais ríspido, faltando com educação ao conversar com eles, houve até um empregado que entornou uma panela de molho e Estêvão ficou tão irritado que além de despedi-lo sem direitos, brigou com o rapaz e por pouco, não partiu para agressão física. Os outros cozinheiros presentes conseguiram apartar a briga antes que se houvesse danos maiores. Estêvão saiu da cozinha e foi para seu escritório deixando transparecer seu ódio pelo funcionário. Entrou, fechou a porta e serviu-se de uma dose de uísque. Não era uma coisa que costumava fazer, mas vinha bebendo todos os dias no trabalho.
Em casa, estava tudo bem. A esposa feliz com a casa farta e os filhos com saúde, não se importava que o marido estivesse chegando cada dia mais tarde e justificando excesso de trabalho. Os filhos cresciam saudáveis e o pai estava cada vez mais ausente. A família estava bem. Isso era o que importava a Estêvão.
O dono dos restaurantes estava mudado. Ele queria continuar sendo o mesmo homem de sempre, mas a sua humanidade estava diminuindo dia a dia.
Uma noite, ele saiu do trabalho depois das três horas da manhã e decidiu caminhar até sua casa. Ele estava protegido, sabia que nada poderia atingi-lo. No meio do seu trajeto até em casa, passou por um mendigo que se assustou ao vê-lo passar. Ninguém passaria naquele lugar àquela hora se não fosse coisa ruim. O pobre coitado tentou não ser notado, mas Estêvão o viu e se aproximou. O mendigo chegou a tossir com o cheiro de enxofre que invadiu o local. Tentou se esconder, mas as luzes vermelhas dos olhos de Estêvão iluminaram a escada suja onde o infeliz buscava dormir naquela noite. Estêvão se aproximou mais e fez com que o indivíduo sem nome, sem dignidade humana se urinasse todo de medo. O que ele via no rosto do agressor, não seria contado para ninguém. Mas o medo foi tão grande que ele perdeu a lucidez. Estêvão riu. Uma risada demoníaca que foi ouvida por toda a região. Sem piedade, arrancou o coração do morador de rua. Deixou o corpo sem vida em uma poça de sangue no mesmo lugar onde ele dormia há dias. O coração na mão lhe dava prazer. Ele queria resistir, mas sorrindo comeu o petisco ainda sangrando. Não existia sabor igual. Era o melhor prato que ele jamais ousaria servir. Era só dele esse prazer. Acabou de devorar o coração da vítima e sorriu. Sentiu que estava sendo observado e fez um gesto de agradecimento ao seu mentor que deu uma risada de aprovação e voltou para sua escuridão.
Estêvão seguiu para casa sem remorsos pelo que acabou de fazer. O cheiro de enxofre e seu olhar vermelho o acompanharam de volta ao lar.
Em casa, todos dormiam e ele entrou, tomou mais uma dose de uísque. Relaxou no sofá da sala e adormeceu. Não tinha muitos sonhos, mas naquela manhã foi se encontrar em espírito com seu amigo inglês.

Imagem: https://jornaleconomico.sapo.pt/noticias/comunidade-de-madrid-quer-saber-quanto-ganham-os-mendigos-em-esmolas-para-descontar-nos-subsidios-361327

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Artur Laizo Escritor

Artur Laizo nasceu em 1960, em Conselheiro Lafaiete – MG, vive em Juiz de Fora há quatro décadas, onde também é médico cirurgião e professor. É membro da Academia Juiz-forana de Letras e da Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafaiete, Sociedade Brasileira de Poetas Aldravistas e presidente da Liga de Escritores, Ilustradores e Autores de Juiz de Fora - LEIAJF.

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