OS TRÊS CACHORROS – Pão de Canela e Prosa
Pão de Canela e Prosa

OS TRÊS CACHORROS

Ele estava voltando de viagem e morrendo de saudade dos três filhos. Geraldo era caminhoneiro e varava o Brasil de cabo a rabo, mas desde que a mulher morreu no último parto, ele sofria cada vez que tinha que se ausentar de casa, como na última viagem que ficou cinco dias fora. Foi a São Paulo buscar uma carga de tecido para uma fábrica de jeans da cidade. Ao sair da Br 0-40 e entrar perto do Restaurante Salvaterra que para ele era uma visão divina, indicava que estava entrando em Juiz de Fora, ele respirou aliviado. Em pouco tempo veria os filhos que ficaram aos cuidados da tia, irmã de sua mulher.
Ao passar pela Av. Deusdedith Salgado, avistou um homem de roupa preta vendendo três cachorros de pelúcia, três Dobermanns em tamanho natural, com uma pelagem negra e brilhante. Pensou que poderia presentear às crianças com aqueles bichos. Parou o caminhão e comprou do sinistro homem de negro seus últimos cachorros. Entrou no caminhão satisfeito com a compra, mas ao dar a partida no veículo pensou ter ouvido um latido sufocado. Riu. Pensou que estava muito cansado e ouvindo coisas. Em pouco tempo estava parando o caminhão na frente da sua casa no bairro Santa Luzia. Abriu o portão da frente e os três meninos de sete, seis e cinco anos vieram correndo abraçar o pai. Geraldo deixava sempre escorrer uma lágrima de felicidade quando abraçava os meninos.
Entrou em casa e Meire, a cunhada que morava na sua casa e cuidava das crianças sorriu pra ele e disse que estava arrumando um café. Geraldo voltou ao caminhão e trouxe então os três brinquedos para dentro de casa. Júlio de sete anos teve medo de se aproximar do cão, mas António e o.mais novo José Carlos, aproximaram do bicho e o abraçaram e riram felizes. Geraldo pensou que em pouco tempo, Júlio também aceitaria o presente.
Entrou no chuveiro e quando saiu, sentou-se à mesa para o lanche da tarde. Observou sua família. Meire era a mulher que ele tinha em casa, mesmo que a respeitasse como cunhada e não havia intimidades entre eles. Nunca houve. Há no bairro, até quem diga que eles são amantes, mas nunca houve interesse de nenhum dos dois.
Depois que a mulher morreu, Geraldo preferiu ficar sozinho e cuidar dos filhos. Tinha uma lu outra mulher em alguns lugares por onde passava, mas era assim também enquanto a esposa era viva. A cunhada estava sentada no sofá vendo televisão.
Mais tarde, já na hora de dormir, Geraldo pôs as crianças na cama, deu boa noite à cunhada que continuava vendo televisão e foi para seu quarto. Antes porém, observou que os três cachorros de pelúcia estavam no canto esquerdo do quarto dos filhos. Pensou ainda: “onde eu estava com a cabeça pra comprar esses bichos enormes pras crianças? Mas elas vão destruí-los rapidamente.” Dirigiu-se ao seu quarto e novamente teve a sensação de ouvir um latido. Voltou a cabeça e direção aos brinquedos e lhe pareceu que os olhos dos animais brilhavam no escuro. Ele riu e pensou que deveria descansar mais. Deitou-se e dormiu imediatamente.
Acordou com um barulho muito grande de alguém caindo da escada que dava para o segundo andar e ao chegar à sala, encontrou a cunhada caída no chão morta. Havia sangue espalhado no tapete da sala. Ela caiu da escada ao se dirigir para o seu quarto no andar de cima. Ele olhou a escada e sentiu um arrepio ao ver no patamar superior um dos cachorros de pelúcia dos filhos. O que aquele brinquedo estava fazendo ali?
Ele subiu a escada, pegou o brinquedo e o pôs novamente junto com os outros dois.
Chamou a polícia e esperou que chegassem. Não havia o que fazer, ele viu que na queda ela teve fratura exposta de crânio e tinha, junto ao sangue, pedaços do seu cérebro.
O tenente Gilberto disse a Geraldo que precisaria que ele fizesse um depoimento na delegacia no dia seguinte e levaram o corpo.
As crianças assistiram toda a confusão, acordadas também pelo barulho da queda.
_ Foi o cachorro que empurrou ela – disse Júlio chorando.
_ Não pode ser, meu filho – consolou Geraldo ao filho mais velho. – É só um brinquedo.
_ Não é não. Ele não é um brinquedo.
Júlio chorava e com isso, os irmãos menores também começaram a chorar e Geraldo não sabia o que fazer. Pegou os três filhos nos braços, levou-os para seu quarto e os fez dormir em sua cama sob sua proteção. A noite terminou com os primeiros raios de sol e ele ainda acordado velando o sono das crianças.
No dia seguinte, ele foi à delegacia, deu seu depoimento e voltou para casa. Ele tinha que arrumar alguém para cuidar das crianças.
Passaram o dia brincando, pareciam quatro meninos. Júlio estava mais arredio que o normal, mas ainda sofria com a lembrança da tia morta. Não se aproximou do cachorro e os três bichos de pelúcia ficaram no canto esquerdo do quarto o dia todo.
À noite, Geraldo queria colocar os filhos para dormir no quarto deles, mas as crianças foram relutantes e preferiram dormir na cama do pai. Geraldo, para que eles ficassem mais tranquilos, fechou a porta do quarto deles, trancando os três cachorros lá dentro.
Dormiram os três um sono bastante agitado. Geraldo sonhou com uma perseguição. Ele correndo em ruas de uma cidade desconhecida e ouvia os cachorros que o perseguiram cada vez mais perto. Ouvia os latidos e eram muitos. Ele estava sem forças para correr mais e sentiu uma mordida na perna direita. Acabou se desequilibrando e caindo no chão. Sentiu a matilha se aproximar e o bafo dos cachorros no seu corpo antes de começaram a matança. Ele acordou assustado e acendeu a luz do quarto. Levou um susto imenso ao ver ao pé da cama os três cachorros de pelúcia a observá-lo. Ele pulou da cama e as crianças se remexeram, mas não acordaram. Ele pegou os brinquedos – pareciam estar quentes – e os levou de volta para o quarto das crianças. Dessa vez, passou a chave na fechadura.
Voltou para seu quarto e novamente preferiu passar a noite acordado e com a luz acesa.
Ora ou outra, ouvia um latido abafado.
Decidiu-se por dar fim às criaturas inanimadas que estavam lhe incomodando tanto.
O sol chegou e ele foi pra cozinha fazer o desjejum para os filhos.
Um a um foram se levantando quietos, não eram assim, sentaram-se à mesa e pareciam apavorados. Geraldo perguntou a Júlio o que houve.
_ Eu não consegui acordar e os cachorros queriam me pegar – disse ele quase chorando.
_ Os cachorros – começou a dizer também Antônio – eles estão latindo. Eles estão com fome.
_ Fome – repetiu o menor dos três.
_ Gente, os cachorros são de brinquedo. Eles não fazem nada e nem comem
_ São de brinquedo não – Júlio explodiu em choro seguido dos outros dois.
_ São sim. Querem ver? Papai vai abrir a porta do quarto e eles vão estar quietinhos lá no canto.
As crianças subiram nas cadeiras e Geraldo foi ao quarto delas. Abriu a porta e viu uma cena jamais imaginada por ele. Os três cachorros estavam parados no canto esquerdo do quarto, mas o quarto estava destruído. Cortinas, lençóis, colchão, tapete, tudo dentro daquele cômodo estava rasgado e destroçado por mordidas de feras. Ele fechou a porta sem deixar as crianças verem e lhes disse. Vou levar vocês à casa da vó Célia.
As crianças se alegraram e rapidamente acabaram de tomar o café da manhã.
A avó que não os via a dias, recebeu os netos abraçando e beijando as crianças. Ela morava sozinha no bairro Nova Era. Era uma mulher forte de sessenta e dois anos. A mãe de Geraldo trabalhava com faxina doméstica e estava de folga naquele dia.
Geraldo explicou por alto o que aconteceu com a cunhada e disse que precisava ir à delegacia e resolver o sepultamento da irmã de sua mulher.
_ Pode deixar as crianças comigo – aceitou ela. – Amanhã também não vou trabalhar. Elas dormem aqui hoje.
Satisfeito com isso, Geraldo pode resolver o velório rápido da cunhada e o sepultamento naquele mesmo dia. Voltou pra casa e entrou no quarto das crianças. Olhou os três cachorros e se sentiu também olhado por eles. Pegou os brinquedos e levou para a garagem vazia e os prendeu lá. Entrou em casa, fechou as portas e janelas e deitou-se. Estava cansado e já era hora de dormir. Duas noites seguidas em claro praticamente, ele estava se sentindo morto de cansado. Dormiu e acordou duas horas depois com barulho no quintal. Ele não sabia o que era até ouvir latidos e respiração de cachorros em suas portas. Os animais estavam enlouquecidos. Queriam entrar na casa e arranhavam as portas, corriam de um lado para o outro latindo muito. Ele se levantou e não sabia o que fazer. Havia cães em seu quintal querendo entrar na sua casa a qualquer momento. Se ele abrisse a porta seria morto por um deles. Se pelo menos estivesse com o seu revólver, mas deixou a arma no caminhão. Ele não tinha o que fazer a não ser se proteger dentro da casa e não permitir que os animais entrassem. Como poderia estar acontecendo aquilo com ele. Que animais seriam esses? Ele não tinha conhecimento de nenhum cachorro na vizinhança. Tentou ver pelo vidro da janela da sala e conseguiu ver três dobermanns pretos correndo pelo seu jardim descuidado e quase sem plantas. Os cães o viram olhando pela janela e mais agitados ficaram. Um deles pulou e quase atingiu o vidro que separava Geraldo dentro de casa do resto do mundo. Ele fechou rapidamente a parte de madeira da janela e ficou na sala. O que fazer? Ligar para a polícia? Corpo de bombeiros? Ouviu um ruído estranho e percebeu que um dos cães estava no telhado tentando entrar na casa por cima. Ele se apavorou e começou a rezar. Nunca Geraldo rezava apesar de ter vários santos na boleia do caminhão, ele não acreditava em nada a não ser em Deus. O cão já conseguira tirar uma telha e olhava para a casa com olhos vermelhos de fúria e ódio, quando percebeu que não havia nada que ele quisesse ali dentro. Largou o buraco que fez no telhado e pulou para o jardim novamente. Os três cães em um acordo mudo, pararam de latir, e saíram pelo portão da frente em disparada pelas ruas da cidade.
Geraldo continuou parado no sofá da sala, com as mãos na cabeça entre desespero e preocupação, não sabia o que fazer. O silêncio tomou conta do lugar e ele aos poucos percebeu que a ameaça estava longe de sua casa. Ele não conseguiu mais dormir. Fez um café, comeu um pedaço de pão de dois dias, duro e sem gosto. Andou pela sala, e andou pelo quarto, e voltou à sala, e foi ao banheiro, e voltou à cozinha e não se continha. O sol invadiu a sala com seus primeiros raios e Geraldo abriu a porta da sala, a princípio com medo e foi à garagem. Os três brinquedos de pelúcia não estavam lá. Ele ficou desesperado, Não poderia estar acontecendo aquilo. Ele não poderia acreditar. Mas se eram os cachorros de brinquedo que ganharam vida e estavam fazendo toda aquela confusão durante a noite – ele olhou para o telhado e viu a telha fora do lugar -, onde estariam agora?
Tentou ligar para sua mãe e não obteve resposta. Sentiu medo, sentiu um arrepio no corpo e decidiu ir à casa da mãe. Entrou no carro e dirigiu como um louco pelas ruas de Juiz de Fora até chegar à casa da genitora. Parou em frente e desceu correndo em direção à casa. Achou muito estranho o silêncio que envolvia tudo, mas mesmo assim passou pela porta da frente que estava aberta. Deparou-se com a pior cena de sua vida. Na sala a mãe estava morta com o pescoço dilacerado por mordidas de animais. Havia sangue por toda parte. Ele gritou pelos filhos e não obteve resposta. Entrou no quarto onde os filhos dormiam e a cena se repetiu: Antônio estava morto com várias feridas pelo corpo, ao seu lado, José Carlos tinha um braço arrancado do corpo e o quarto estava repleto de sangue. Onde estaria Júlio? Ele não via o filho maior e nem os responsáveis por aquela chacina desenfreada. Ouviu um barulho de carro na rua em frente e correu para a porta. Viu uma Van parada do outro lado da rua. O homem sinistro que lhe vendeu os brinquedos riu. Ele abriu a porta da Van e Geraldo viu os três cachorros negros entrarem no carro. Para sua surpresa, ele viu o filho mais velho se dirigindo ao carro de porta aberta. Ele chamou pelo filho que parecia não ouvir. Geraldo tentou correr em direção ao carro, mas foi imobilizado por forças estranhas a ele. Parado ele viu Júlio se virar para ele. A criança riu e iluminou a rua com seus olhos vermelhos demoníacos. A mensagem estava dada: Júlio pertencia agora ao senhor dos infernos que enviou os cães para casa do caminhoneiro que perdeu a família toda por isso. Júlio entrou na Van e o motorista deu a partida. O carro, cheio de almas novas, acelerou, deixando na rua um cheiro de enxofre e desaparecendo na neblina que baixava sobre a cidade.

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Artur Laizo Escritor

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