FOI MELHOR PARA ELA – Pão de Canela e Prosa
Pão de Canela e Prosa

FOI MELHOR PARA ELA

LUZ

Ela estava ali internada naquela enfermaria simples, rodeada de outros doentes que, como ela, viviam suas doenças antigas ou novas e sofriam o peso de suas idades e de toda a carga de estragos que o tempo lhes causara.

Ela sofrera um ataque cardíaco aos oitenta anos e trouxeram-na para o hospital. Único hospital da região especializado em tratar nada. O lugar era pequeno e o hospital era totalmente equipado para um lugar pequeno e somente poderia tratar de coisas pequenas. Havia somente um médico para a população toda da cidade que não poderia permanecer no hospital as vinte e quatro horas do seu dia, todos os dias.

Os doentes eram internados e cuidados. Algumas vezes transferidos para a cidade grande, quando tinham um problema grande, ou quando conseguiam uma ajuda maior. Alguns morriam. Muitos morriam. Alguns sobreviviam.

Ela estava lá. Deitada. Sozinha.

A dor no peito parara. Ela conseguia respirar melhor. Conseguia entender o que estavam falando ao seu redor. A enfermeira entrou vestida de branco e lhe deu um remédio branco que ela tomava já há quatro dias, sempre naquele mesmo horário. Seria para dormir? Para tirar a dor no peito? Para que serviria? Ela não se importava em saber. Se lhe davam era porque precisava.

A enfermeira branca, vestida de branco, saiu da enfermaria branca e entrou seu pai, vestido de preto. O homem velho não disse nada. Olhou para a filha e ela olhou para o pai. Que saudade! Não via o homem há muitos anos e ele não mudara nada. Ela tinha dez anos e adorava sentar nos seus joelhos e brincar de balanço.

_ Vamos brincar? – perguntou ela olhando para o velho que parecia mais novo.

Não houve resposta e ela insistiu. Falou mais alto:

_ Vamos brincar? Onde está o Ricardo?

_ Não tem Ricardo aqui não! – disse uma voz no fundo da enfermaria.

_ Chama o Ricardo, pai – disse ela olhando o pai parado na porta da enfermaria olhando para ela.

A enfermeira vestida de branco passou pela porta, por dentro do vulto do pai vestido de preto e disse a ela:

_ Cala a boca, está na hora de dormir.

_ Chama meu pai e o Ricardo – pediu ela olhando para a porta da enfermaria.

_ Eles não estão aqui agora não – disse outra pessoa próxima. – Está na hora de ir dormir.

Ela olhou para a porta e o pai continuava a sorrir. Ela era a sua garotinha. Ela tinha dez anos e queria brincar com ele. Mas queria que o irmão também viesse brincar com eles. Esquecera-se que Ricardo morrera assassinado há dez anos. Ela queria que eles estivessem ali com ela.

O pai deu passagem para o irmão. Ricardo estava com doze anos e era como ela se lembrava dele. Ele sorriu também para a irmã que olhava a porta da enfermaria com os olhos embaçados pela catarata que nunca pode operar. Ela sorria para eles.

Alguém se aproximou e ela pode ver a enfermeira branca, vestida de branco com uma seringa na mão. A mulher lhe fez uma medicação na veia e ela sorriu. Estava leve e sem dor. Os olhos se fecharam em um minuto e ela se viu correndo na grama com Ricardo e mais dois irmãos menores. Havia um sol, mas ele não queimava sua pele. Havia vento, mas não havia frio. Havia um mundo de gente que ela não via há anos. Seu pai, sua mãe, seus irmãos, tios, tias, todos os parentes estavam por ali para lhe sorrir e deixar que ela corresse e brincasse naquela grama verde. Ela sentiu a mão do irmão mais velho segurando a sua e sabia que podia confiar nele. Parecia que voavam. Para onde iriam? Todos que estavam ali com ela voavam e iriam para o mesmo lugar. Aonde iriam? Havia luz. Foi o que ela pode ver com mais nitidez. Luz. Ela sorria.

No dia seguinte, pela manhã, uma enfermeira negra vestida de branco entrou na enfermaria. Encontrou o mesmo sorriso no rosto dela. Ela pode sentir ainda o cheiro de grama molhada e viu um fisgo muito tênue, de luz branca se dispersando. Havia um sorriso no rosto da mulher. Sorriso de quem encontrara as pessoas que amava e que há muito não via. A enfermeira fechou os olhos dela e disse aos outros doentes da enfermaria.

_ Morreu, coitada, durante a noite. Foi melhor para ela.

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Artur Laizo Escritor

Artur Laizo nasceu em 1960, em Conselheiro Lafaiete – MG, vive em Juiz de Fora há quatro décadas, onde também é médico cirurgião e professor. É membro da Academia Juiz-forana de Letras e da Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafaiete, Sociedade Brasileira de Poetas Aldravistas e presidente da Liga de Escritores, Ilustradores e Autores de Juiz de Fora - LEIAJF.

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