INVERNO EM PARIS – Pão de Canela e Prosa
Pão de Canela e Prosa

INVERNO EM PARIS

 

– Vamos pra Paris? – perguntou Roberto de repente.

– Claro! – responde Maria Lúcia sorrindo.

– Eu estou falando sério, gente.

– Nós topamos – diz Silvio, – vamos de bicicleta.

– Não, vocês não estão me entendendo – retorna Roberto aos amigos. – Eu estou meio de saco cheio de tudo o que faço aqui, vocês também. As nossas famílias são uns porres. Não temos nada a perder. Vamos pra Paris.

– Mas a gente nem fala francês – diz Maria Lúcia.

– Isso não é problema! Eu posso ensinar francês para vocês – diz Roberto.

– Você sabe que seria ótimo – diz Silvio. – A gente pode pensar no assunto.

O garçom passa e traz outra garrafa de vinho para os três amigos que aguardam o jantar no restaurante.

São amigos de muitos anos e desde a escola média, andam sempre juntos, fazem tudo juntos e, como a vida acaba mudando os hábitos de todo ser humano, não podem mais sair juntos todas as noites, mas às sextas-feiras, o jantar na Cantina do Giuliano é sagrado.

– Não acredito que tenhamos muito como resolver isso já – explica Roberto, – mas em seis meses, podemos embarcar para Paris como todas as nossas coisas resolvidas.

– Seis meses é um bom tempo – concorda Silvio. – Eu preciso mesmo resolver umas pendências…

– Seis meses e mudamos de vida – concorda também Maria Lúcia. – Ah, mas vai ser ótimo! Imaginem, Paris!

– Mas não será a Paris dos sonhos no início não, Maria Lúcia. Vamos ter que trabalhar… – explica Roberto.

– Eu sei, querido, mas sair dessa vida que tenho vai ser muito bom.

Os três amigos sonham com a mudança de vida. Muitas pessoas vivem esse sonho de mudar de vida saindo do país. Esperam que a vida seja menos árdua e menos difícil em outras terras. Esquecem-se, no entanto, que terão mil outros dissabores no estrangeiro, farão coisas que não fariam na terra natal por se sentirem diminuídos em suas funções. A saída do país para melhorar de vida é uma grande ilusão.

Roberto há muito tempo tinha planos de sair do Brasil. O jovem de vinte e oito anos era professor do curso de engenharia e mantinha ainda um escritório de sucesso. Já era nome conhecido em quase todo o país. Solteiro, morava sozinho em uma excelente casa de quatro quartos em um bairro nobre. Vestia-se muito bem e vivia em perfeita harmonia com a moda mundial.

Sílvio dividia o escritório de advocacia com um outro amigo, mas era um magistrado medíocre. Jamais conseguia uma boa causa e vivia de causas carcerárias. Também aos vinte e oito anos estivera quase se casando há cinco anos atrás, mas o desentendimento entre as duas famílias impediu o casamento e levou ao rompimento da relação e até da amizade. Nunca mais se interessou por ninguém.

Maria Lúcia era proprietária de uma boutique famosa que herdara de sua mãe quando esta se sucumbiu em um acidente automobilístico há cinco anos. A moça morava sozinha e há mais de quinze anos não se tem notícias de seu pai. É linda e, apesar de ter já seus vinte e seis anos, nunca pensou em se casar.

– A gente precisa aprender francês – retornou Sílvio.

– Eu ensino pra vocês. Agora o mais importante é que ninguém saiba disso. Vamos fazer como se tudo estivesse normal e quando for a hora a gente vai e pronto – diz Roberto.

– Eu acho ótimo! Ah, eu sou louca pra conhece Paris – sonha Maria Lúcia. – Você acha que a gente consegue mesmo ir, Roberto?

– Claro, menina! Em seis meses a gente terá o dinheiro para ficar pelo menos dois meses sem trabalho – explica Roberto, – agora eu preciso passar para vocês o meu plano todo de viagem, de dinheiro, de tudo enfim.

Os três amigos continuam conversando e sonhando durante o jantar e durante toda a noite.

A vida vem mostrando a Roberto que todo o seu esforço lhe dá apenas posição social, prestígio e nada mais. O grande vazio de sua vida não está esclarecido e ele sofre com uma enorme solidão cultivada ao longo de todos esses anos. Não conseguiu se firmar emocionalmente e sempre busca alento nos amigos Silvio e Maria Lúcia.

Sílvio por sua vez, sente-se o homem mais sozinho do mundo desde o fim de seu noivado. Não há nada que o faça buscar outros relacionamentos e nem sair da enorme casca que criou em torno de si mesmo. Apesar de mau advogado, tem uma renda mensal muito boa e convive com todo o luxo que precisaria um homem só.

A mais estável sentimentalmente é Maria Lúcia que é uma mulher independente financeiramente e parece estar de  bem com a vida, mas sofre também com uma insatisfação pessoal infindável.

A decisão de ir para Paris agradou em cheio todos eles. Precisavam realmente chacoalhar a vida. Precisavam quebrar a cabeça, pisar em falso, cair… Precisavam tomar essa decisão com força.

O dia do embarque chegou rápido. Encontraram-se no aeroporto do Galeão já falando francês. A euforia dos três era contagiante. Ninguém os acompanhava. Disseram aos amigos e parentes que iriam ali, a Paris, por algum tempo e mandariam notícias.

Tudo era festa. O avião: – Maria Lúcia adorava avião, Silvio jamais andar em um e Roberto estava delirante! Fizeram roupas especiais para o avião. Maria Lúcia comandou o guarda-roupas. Estavam muito bem vestidos. Pareciam de férias.

Enfim Paris! Desceram no aeroporto e Roberto, fluente na língua local, organizou todo o desembarque, todo o translado até o hotel. A cada metro que o taxi andava era um deslumbramento novo. Silvio estava apavorado mas ao mesmo tempo deliciado com a perspectiva da vida nova.

Roberto explicou-lhes que ficariam em um hotel ¨moins cher¨ por alguns dias e logo depois estariam em seu apartamento. Não demorou tantos dias e logo estavam muito bem instalados em um pequeno apartamento de dois quartos no Quartier Latin.

Os três amigos tornaram-se então muito mais unidos na solidão conjunta de uma cidade tão grande e tão diferente. Não havia nada que os fizessem estar separados e, até mesmo na hora de arrumarem emprego, arrumaram na mesma firma.

Certa noite, saíram para tomar um bom vinho e esticaram um pouco mais a noite. Estavam que não cabiam sem si de satisfação e o clima romântico da cidade, talvez tenha feito com que eles sentissem um pouco mais de atração por eles mesmos.

Acordaram no dia seguinte, dormindo na mesma cama. Roberto foi o primeiro a acordar e sentir o emaranhado de pernas entrelaçadas. Sentia o contato dos corpos de Maria Lúcia e Silvio no seu e fechou os olhos contente. Permaneceu quieto, diminuiu até a respiração com medo de acordar os amigos. Quando sentiu que acordavam, fingiu também despertar e deu bom dia. Ambos responderam timidamente e procuraram sair da cama e vestir suas roupas. Estavam envergonhados por estarem tão intimamente unidos no mesmo espaço. Maria Lúcia entrou no banheiro e Silvio foi para a Janela. Roberto se vestiu, embora tivesse o costume de entrar no chuveiro todas as manhãs, preferiu conservar no corpo o cheiro do sexo feito à noite, dos cheiros dos amigos.

Tomaram café da manhã em silêncio e saíram para o trabalho também em silêncio. À noite, depois de muito refletir sobre o que acontecera, evitaram chegar em casa tão cedo e desviaram o caminho. Sílvio sugeriu tomarem um vinho. Maria Lúcia aceitou se fosse apenas uma garrafa. Para Roberto tanto fazia. Era importante estarem juntos.

Os dias se passaram e eles continuaram a se ter nas noites frias após certa dose de vinho. Acordavam com menos vergonha e cada dia mais se sentiam bem ao acordar misturados uns nos outros. Supriam a solidão maior que criaram para si mesmos se confortando sexualmente.

Um dia, Roberto sentiu que talvez não estivesse certo e por vezes ele se sentia sobrando na relação cada dia mais forte dos amigos. Ele estaria atrapalhando a vida deles. Eles estariam com ele por companheirismo, porque ele tivera a ideia de ir para Paris.

Saiu de casa, Alugou um outro apartamento de um quarto e foi morar sozinho e depois acostumou-se à cama fria, ao abandono a que se impusera.

Ao seu lado, Sílvio e Maria Lúcia também estavam péssimos. Não tinham mais prazer ao chegar em casa e pouco conversavam. A situação piorou quando uma noite, Maria Lúcia voltou para seu quarto e preferiu dormir sozinha. Alguma coisa se quebrara entre eles. O prazer de estar em Paris havia se acabado?

Não puderam deixar passar mais dias naquele desespero, naquela insatisfação total, naquele viver por viver.

A ideia de sair à noite foi de Silvio. Há duas semanas eles não saiam para tomar nada. Precisavam beber um bom vinho e colocar as notícias em dia. Maria Lúcia se empolgou e se vestiu da melhor forma possível. Roberto fora o primeiro a chegar. Ousou até vestir um terno azul marinho.

Chegaram ao restaurante que frequentavam desde que chegaram a Paris e se sentaram sem saber o que dizer. Falaram da neve que prometia cair, falavam das pessoas que passavam por eles procurando lugar no restaurante lotado, falavam de nada.

– Por que você se mudou lá de casa, Roberto? – perguntou Silvio incisivo.

– Porque mudei, ora… – respondeu evasivo.

– Você não gosta mais da gente? – perguntou Maria Lúcia sorrindo.

– Não é isso… – titubeou Roberto. – Eu… eu…  Na verdade eu achei que estava incomodando vocês. Eu estava meio que atrapalhando a relação…

– Que relação? – perguntou Silvio. – A nossa? – fez um gesto circular incluindo o amigo.

– Eu acho que… – tentou dize Roberto.

– Eu acho que você é um bobo – disse Maria Lúcia. – Você está fugindo de que?

– Eu não estou entendendo – disse Roberto. – O que vocês querem? Vocês acham que eu estou contente de morar sozinho, de estar sozinho, de quere deixar vocês onde estão?

– Claro que não! E você acha que nós estamos satisfeitos de não ter você? – perguntou Silvio empolgado como vinho que bebera. – O que você acha que nós fizemos depois que você se foi?

– Sei lá – respondeu Roberto sorrindo. – Vocês estão com saudades de mim?

– Não brinque, Roberto – disse Maria Lúcia séria. – Estivemos conversando muito hoje, Silvio e eu e vimos que nós só existimos em três.

– Você faz falta, Roberto – disse Silvio.

– Você está brincando, Silvio. Com esse mulherão do lado, você está a fim de mim?

– Não, cara, você não está entendendo. Custou-nos algumas noites de sono pra definir isso. Nós estamos a fim de nós. Nós estamos fazendo falta para nós. Não existe um se não for três –explicou Silvio.

– Roberto, você tem que voltar para nós – disse Maria Lúcia.

– Eu estou confuso – disse Roberto. – Eu também senti a falta de vocês. Como eu adorei o primeiro dia que acordamos juntos e fizemos amor a noite toda. Como eu adorei cada noite depois. Como eu adoro vocês. Eu achei…

– Achou merda! – disse Silvio enfático. – Eu não consigo aquecer a Maria Lúcia, sozinho nesse inverno, querido.

– Eu estou fazendo falta? – perguntou Roberto.

– Sim! – responderam juntos.

– Vocês também estão fazendo falta. Imaginem eu então, dormindo sozinho, que frio!

– Vamos dar um jeito nisso hoje – disse Silvio. – Eu te amo, cara.

– Também te amo – disse Maria Lúcia. – E amo o Silvio.

– Eu amo vocês dois – concluiu ele.

– Garçom – chamou Maria Lúcia, – traga outra garrafa de vinho, pra começar.

Riram, se abraçaram, se beijaram independente de quem estivesse perto deles e permaneceram a noite de mãos dadas. Sabiam que ali estariam fazendo uma coisa que jamais fariam na terra natal, mas que era o que queriam, era o que lhes aquecia o coração mais que tudo naquele inverno francês. Julho 2012.

Antologia Lafaiete em Prosa e verso. 2012. XVIII:32-6.

 

 

 

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Artur Laizo Escritor

Artur Laizo nasceu em 1960, em Conselheiro Lafaiete – MG, vive em Juiz de Fora há quase quatro décadas, onde também é médico cirurgião e professor. É membro da Academia Juiz-forana de Letras e da Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafaiete e presidente da Liga de Escritores, Ilustradores e Autores de Juiz de Fora - LEIAJF.

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