AINDA DARIA TEMPO – Pão de Canela e Prosa
Pão de Canela e Prosa

AINDA DARIA TEMPO

Ele andou pelo caminho mais longo naquele dia. Queria chegar ao topo do morro, mas queria demorar em chegar lá em cima. O sol estava castigando suas costas sem camisa, mas ele não se importava com isso. O suor escorria, mas ele não se importava com isso. O mundo estava ruindo ao redor dele, mas ele não se importava com isso. Ele não queria se importar com mais nada. Ele não era mais nada e nada mais importava naquele momento.
Ele sabia que iria chegar ao todo do morro e chorar. Iria chorar muito e talvez ficasse por lá muito tempo. Queria ficar sozinho e pensar. Queria ficar sozinho para sempre. Não adiantava querer ver as pessoas, amar as pessoas, ter as pessoas por perto, elas sempre iriam embora e ele acabaria sofrendo por isso e ficaria sozinho novamente. Melhor seria se ele conseguisse ficar sozinho para sempre.
O sol castigava as suas costas nuas. Saíra de casa só de bermudas, sandálias de borracha. Não queria se vestir, nem se despir, não queria nada. O suor vez ou outra entrava nos seus olhos e a ardência fazia com que ele enxugasse o líquido que descia da testa. Ele precisava sair do sol, mas o caminho que escolhera para subir não deixava um lugar sem a luz e o calor daquele sol de verão. Ele subia devagar, mas queria chegar ao topo do morro.
Não havia ninguém naquela hora, naquele lugar. Ele estava só. Estava sozinho como deveria ser sua vida sempre. Ele não deveria amar ninguém. Ele era infeliz e deveria continuar a sua vida, sozinho. Por que fora amar aquela mulher? Ela aparecera na sua vida sorrindo e chegando devagar. Ele a vira no shopping vendendo perfumes em uma loja da elite. Ele não gostava de perfumes e nem era da elite. Ela sorriu. Ele sorriu também. Ela se aproximou e ele não se afastou. Ofereceu perfume e ele disse que não poderia usar. Conversaram pouco e ele voltou no dia seguinte.
Em uma semana ele chamou para sair e ela aceitou. Foram para um quiosque na beira da praia. Ele ofereceu um sanduiche e ela aceitou, mas não queria muito grande porque vivia de dieta e tomou só água. Ele comeu o maior que tinha e tomou refrigerante. Levou ela a sua casa a pé. Conversaram bobagens, ele ria mais que ela. Ria do que falava e do que pensava. Morria de vergonha da moça, mas queria namorar aquela que era a sua inspiração há dias.
O amor dele cresceu e o dela não floresceu. Ele queria tê-la para sempre ao seu lado. Ela não se importava se não o visse mais. Em poucos dias de passeios e sanduíches e água e refrigerante e conversas fiadas, ele a amava, ela não o suportava mais. Ele queria vê-la no dia seguinte, ela não queria vê-lo mais.
Eles eram muito diferentes. Ela queria casar com um homem rico que gostasse de festas, viagens, glamour. Ele queria casar, ter filhos, queria uma mulher que cozinhasse, lavasse e cuidasse dele. Ela queria vestir a última moda. Ele queria calção, camiseta e chinelo. Ela queria restaurantes e recepções, ele um boteco e juntar os amigos.
Ela saiu com ele depois do trabalho e quando ele sugeriu o sanduiche, ela recusou. Disse que já havia comido antes de sair do trabalho e queria ir pra casa direto. Que talvez fosse melhor não se verem mais. Ele segurou uma lágrima – era homem demais para chorar na frente dela. Ela pegou na sua mão para se despedir e evitou o beijo na face. Procurou entrar rapidamente em casa e quando disse: Até qualquer dia! Ele sabia que não era para procura-la mais. Viu quando ela fechou a porta e apagou a luz da sala. Ele olhou para a porta, olhou para a casa, olhou para a noite, olhou para o nada. Sentiu-se um nada!
Andou a noite toda e nem quis entrar em casa cedo. O sol apareceu e ele estava sentado na porta da sua casa, ainda se sentindo um nada e olhando para o nada. Entrou em casa, tirou a roupa da noite que ainda usava e vestiu a bermuda e o chinelo e resolveu ir para o morro. Lá no alto ele poderia pensar e pensar e quem sabe ele poderia entender o que acontecera?
O sol continuava a castigar as suas costas e o suor a encharcar o seu corpo todo. Ele não se importava com isso. Queria chegar ao topo do morro e pensar na vida. De longe ele avistava a árvore do alto do morro onde ele passara boa parte da vida, primeiro como criança subindo na árvore, caindo da árvore, amando sob a árvore, amando a árvore.
Chegou ao seu objetivo e abraçou a árvore. Sair do sol e entrar na sombra da árvore fez muito bem para ele. Ele abraçou a árvore e sentiu que ela o abraçou. A árvore era sua melhor amiga. Ele se sentiu confortado e queria chorar no ombro daquela amiga, se a árvore tivesse um ombro. Deixou-se cair sentado aos pés da árvore e fechou os olhos. Pela sua mente passou toda a sua vida. Ele fora uma criança infeliz por culpa dos pais. Ele fora um adolescente solitário porque era diferente de todos os outros amigos que tinha na época. Ele era um homem infeliz, solitário e sem planos para a vida porque crescera e vivera sem nenhuma esperança de vida.
Ela era o sol da sua vida. Uma lágrima rolou pela sua face. Outra a seguiu. Ele segurou o rosto com as duas mãos e chorou. Chorou como há anos queria chorar e não conseguia. Ele chorou e sofreu todas as mazelas de toda a sua vida. Tudo que fora ruim e tudo que fora desagradável, passou pela sua mente. Ele não tivera nada de bom para se sentir bem. Só tinha na sua vida fatos e coisas ruins com as quais se martirizar. Ele não tinha nada. Ele não era nada. Ele não existia. Ele não devia existir. Ninguém daria falta dele. Nem mesmo a mãe – viúva bêbada -, nem mesmo ela se importaria se ele não voltasse para casa. Ele deveria ficar ali. A árvore poderia assistir ao seu último suspiro. O mundo lá embaixo fervia, ele por dentro também fervia.
O que poderia fazer para aliviar tanto sofrimento? Ficar ali parado até morrer? Ele poderia morrer e ninguém se lembraria dele. Ele poderia desaparecer e ninguém iria procura-lo. Ele poderia não voltar nunca mais e o patrão iria colocar outro no seu lugar, a mãe iria pensar que ele entrara e saíra e ela não o viu… Deu-se conta que ninguém mais notaria a sua ausência e a sensação de solidão foi a maior que tivera em toda a sua vida. Pensou na árvore, na corda do balanço, no nó em volta do pescoço. Pensou no fim!
As lágrimas rolavam pelo rosto e ele se deu conta que estava com fome. O barulho do abdome avisou que ele precisava comer alguma coisa. Não comia nada desde ontem à tarde. Em uma das roncadas mais forte que o intestino deu, ele riu. Riu de si mesmo. O que ele estava fazendo ali àquela hora? Era quase meio dia e ele teria que trabalhar depois das duas da tarde. Ele precisava comer, ele precisava de banho. Ele precisava dele mesmo. Abriu os olhos, secou a última lágrima e sorriu mais uma vez.
Tivera uma vida tão sofrida e tão triste que não seria o fato de um amor que não deu certo a gota d’água para terminar com a sua existência. Levantou-se. Olhou em volta. Ninguém! Abraçou novamente a árvore, respirou fundo e olhou para a cidade aos seus pés, o mar distante, a vida pela frente.
Resolveu descer o morro, voltar para casa, voltar para o trabalho, voltar para o nada e tentar dar uma chance a si mesmo. Ele iria mudar a si próprio para conseguir ser feliz. Não sabia ainda onde começaria a mudança. Com a mãe? Com o emprego? Com a solidão? Resolvera descendo o morro que iria mudar tudo isso. Ele iria mudar toda a vida medíocre que vivia. Ele iria tentar ser feliz. Quem sabe ainda daria tempo?

Antologia Lafaiete em Prosa e Verso, 2016;XXII:27-30.

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Artur Laizo Escritor

Artur Laizo nasceu em 1960, em Conselheiro Lafaiete – MG, vive em Juiz de Fora há quatro décadas, onde também é médico cirurgião e professor. É membro da Academia Juiz-forana de Letras e da Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafaiete, Sociedade Brasileira de Poetas Aldravistas e presidente da Liga de Escritores, Ilustradores e Autores de Juiz de Fora - LEIAJF.

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