ENCONTRO NA CATEDRAL – Pão de Canela e Prosa
Pão de Canela e Prosa

ENCONTRO NA CATEDRAL

SEXTO CAPÍTULO – O PACTO

A respiração de Estêvão estava ficando difícil. Sempre que ele dormia, a mulher percebia que ele respirava com menor frequência e a cada expiração o cheiro de enxofre aumentava no quarto. Ela começou a se sentir mal no quarto e resolveu ir tomar um copo de água e dormir no quarto dos filhos. Ao entrar no quarto das crianças, sentiu o mesmo cheiro. O que estaria acontecendo? Acendeu a luz e assustou-se com uma figura humana vestida de preto junto da cama do filho do meio, Marcelo. Ela olhou para o que achou ser um assaltante e essa figura em negro retribuiu o olhar fixando no seu rosto um par de luzes vermelhas incandescentes e desapareceu.
Ela deu um grito e acordou os filhos.
_ Mãe, o que houve? – perguntou Marcelo de quem o homem de negro estava mais perto.
_ Você está bem? – perguntou ela abraçando o filho. – Você está bem?
_ Estou, mãe – o rapaz estava assustado com o grito da mãe. – O que aconteceu?
_ Havia um homem, um fantasma, sei lá, ao seu lado. Você não viu?
_ Não havia ninguém aqui, mãe – reclamou Márcio. – Deixa a gente dormir.
_ Mas e o cheiro? Vocês não estão sentindo o cheiro? – perguntou ela aspirando e percebendo que não havia mais cheiro de enxofre no quarto dos filhos.
_ Não, mãe – Jorge tentou sentir o cheiro. – Não tem cheiro de nada aqui.
_ Desculpem-me – ela se levantou envergonhada. – Voltem a dormir.
Ela saiu do quarto e foi para a cozinha. Selma não estava ficando louca. Ela viu no quarto dos filhos aquela entidade que desapareceu quando ela entrou. O marido estava com o mesmo cheiro do quarto dos filhos. Ela não aguentava mais sentir aquele cheiro infernal. Preparou uma xícara de café e sentou-se à mesa. Ela não sabia o que estava acontecendo na sua casa, mas havia alguma coisa errada.
O dia amanheceu e pegou Selma na cozinha na quarta dose de café. Pensando, pensando, pensando e não conseguindo achar uma solução para o que havia presenciado.
Estêvão foi o primeiro a acordar e chegou à cozinha perguntando à mulher porque ela não conseguira dormir.
_ Eu perdi o sono.- mentiu ela. – Levantei para não acordar você. Levantei, comi, tomei café e aí acabei ficando por aqui.
_ Está tudo bem? – perguntou ele beijando a esposa.
_ Está sim – respondeu ela.
Os rapazes entraram na cozinha fazendo barulho natural da idade e Marcelo perguntou à mãe:
_ Está tudo bem, mamãe?
_ Está sim, querido – respondeu ela. – Está tudo bem.
Sentaram tomaram café e comeram o que é normal que eles comem no café da manhã e saíram. Estêvão somente tomou café. Saiu apressado de carro e foi para o restaurante.
Selma ficou sozinha na cozinha. Ela estava com medo. Não sabia medo de quê. Mas, algo estava errado. O seu celular tocou e ela se assustou. Pegou o telefone e atendeu. Do outro lado da linha, Augusto.
_ Dona Selma – começou ele tímido, – eu sou o Augusto, gerente do restaurante.
_ Ah. Como vai, Augusto? Tudo bem? Estêvão já saiu.
_ Não, dona Selma, eu, na verdade queria falar com a senhora mesmo.
_ Comigo? – perguntou ela. – Tudo bem. O que é?
_ Não podemos conversar isso por telefone – explicou o rapaz.
_ Tudo bem, Augusto. Onde você está?
_ Estou na igreja. Aqui na Catedral.
_ Tudo bem – ela achou estranho ele estar na igreja, mas achou que estivesse rezando para a mãe.
Ela se arrumou, pegou o carro e foi para a igreja. A Catedral de Juiz de Fora foi construída entre os anos 1884 e 1886. Selma teve durante todo o tempo a sensação de estar sendo observada. Achou que era nervosismo e preferiu deixar pra lá. Dirigiu rapidamente e entrou na igreja. Somente depois de passar pela porta da frente deixou de sentir que estava sendo observada. Ela entrou pela igreja escura àquela hora da manhã e encontrou o empregado do marido no segundo banco perto de altar.
_ Dona Selma – cumprimentou ele ao vê-la.
_ Como vai, Augusto? – cumprimentou também ela.
_ Tudo bem, senhora – começou ele. – Eu pedi que a senhora viesse me ver aqui para pedir ajuda para senhora.
Estêvão estava no restaurante e recebeu uma nova visita do “amigo” que se passava por um lorde inglês. Sentiu-se observado pelo ser das trevas e se virou em direção à ele.
_ O que está fazendo? – perguntou o dono do restaurante.
_ Vendo se você está andando na linha – respondeu ele. – Eu sou parte de você e estamos mais unidos que você pensa, rapaz.
_ Como vai a família? – perguntou ele sorrindo.
_ Está bem. Por quê? – interessou-se Estêvão.
_ Eu sei. Sua mulher é que anda um pouco nervosa – ele riu e deixou a sala com mais cheiro ruim.
_ O que você quer dizer? – perguntou Estêvão assustado.
_ Essa noite, ela saiu andando pela casa. Não sei se ela se lembra de ter me visto no quarto das crianças…
_ O que você estava fazendo com meus filhos? – gritou Estêvão empurrando o homem de terno de tweed verde que caiu sentado em uma poltrona encostada na parede a três metros de distância
_ Está ficando forte, Estêvão – zombou o ser demoníaco se levantando sem um amassado ou um fio de cabelo fora do penteado.
_ O que você quer com meus filhos? – voltou q perguntar Estêvão. – O trato é entre mim e você.
Deixe minha família em paz.
Os dois discutiam, e fora do escritório, os empregados estavam curiosos: O patrão discutia e brigava, mas não havia ninguém na sua sala que eles conseguissem ver. Estavam todos bastante preocupados. Justo naquele dia, Augusto não viera trabalhar e o chefe não estava em condições de assumir a coordenação do restaurante. Alguns achavam que ele estava ficando louco. Alguns se benziam.
Augusto pediu a Selma que chamasse os filhos para a igreja. Contou para ela o que vinha acontecendo no restaurante, o que aconteceu com sua mãe, enfim abriu-se com a mulher do patrão que ficou apavorada. Ela acreditava em tudo que Augusto lhe contou porque ela acompanhou a mudança dos hábitos do marido. Estava ainda com muitas dúvidas sobre a morte misteriosa dos sogros.
_ Ele fez com que eles se suicidassem – afirmou Augusto.
_ Eu não posso aceitar isso – disse Selma aos prantos. – O que Estêvão fez, meu Deus?
_ Não sei ao certo, dona Selma – tentou confortá-la Augusto.
Nesse momento, os filhos de Selma chegaram à igreja. Entraram preocupados e viram a mãe chorando.
_ O que aconteceu? – perguntou Marcelo.
_ Meus filhos, precisamos conversar – começou ela segurando o pranto. – Sentem-se.
Os rapazes de assentaram e esperaram que a mãe lhes dissesse o que estava incomodando. Ela contou tudo que conversou com Augusto. Desde a morte do avô deles até o susto que levou de madrugada com a visão no quarto deles. Márcio ficou muito assustado, quase chorando, mas Marcelo e Jorge resolveram ajudá-la.
_ Acho que temos que chamar o papai aqui na igreja – decidiu Jorge. – Aqui poderemos ter ajuda. Vou chamar o padre Jonas.
Ele entrou na sacristia e Marcelo abraçou a mãe confortando-a. Márcio perguntou a Augusto:
_ O que você notou de diferente com papai?
_ Ele começou a ficar estranho com os funcionários, sempre alheio ou mal-educado. Brigava por pouca coisa. Agora o mais estranho era ficar o dia todo dentro do escritório sem comer e, às vezes, falando sozinho.
_ Falando sozinho? – perguntou Selma.
_ Sim! Parecia que tinha sempre alguém com ele – respondeu Augusto.
_ Deus me livre – Selma fez o Sinal da Cruz.
O padre Jonas entrou no adro da igreja acompanhando o filho mais novo de Estêvão e cumprimentou a todos. Contaram-lhe tudo que vinham percebendo e o homem estava boquiaberto. O padre sabia o que estava acontecendo, mas jamais ouvira falar de caso semelhante.
_ Acho melhor chamar o seu marido aqui na igreja, senhora – disse ele. – Aqui dentro o mal não poderá entrar por ser um Terreno Santo.
_ Vou tentar, padre – decidiu-se Selma.
Estêvão recebeu o telefonema da esposa e a entidade que estava com ele já não era mais o inglês. Havia à sua frente um ser de mais de dois metros e meio de altura, de pele muito escura e com algumas escamas, pés de bode, cauda de réptil e a face era apavorante: grandes olhos vermelhos e flamejantes, boca escancarada com muitos dentes agudos e grandes de onde escorria uma baba esverdeada e um par de chifres arroxeados e escuros que subiam até o teto.
_ O que ela quer? – perguntou ele com voz cavernosa e muito grave.
_ Ela quer que eu vá a igreja encontrar com ela – respondeu um Estêvão de pele escura e hálito de enxofre com um par de chifres semelhante ao da besta.
Ele se levantou da cadeira e bateu os cascos de bode no chão. Expirou uma carga de enxofre no ar e continuou:
_ Eu vou lá encontrar com ela.
_ Não vá! – ordenou o demônio.
_ Eu tenho que ir – definiu Estêvão. – Vamos resolver isso de uma vez.
Ele saiu e ao passar pela porta do escritório seu corpo assumiu a forma humana novamente. Ele passou pelos empregados assustados que voltaram a trabalhar no mesmo momento. Ordenou que tudo continuasse funcionando normalmente e saiu. Muitos empregados se benzeram, alguns tinham lágrimas nos olhos, alguns queriam sair correndo, mas não podiam perder o emprego.
Estêvão parou o carro em frente à igreja e se dirigiu ao templo. Quanto mais andava em direção à porta da Matriz, mais leve se sentia. Passar pela porta, no entanto, foi difícil, mas ele entrou no adro. Viu a família reunida na frente perto do altar junto com o padre e teve receio de se aproximar.
_ Pode vir, Estêvão – disse o padre com um terço nas mãos. – Aproxime-se.
O dono dos restaurantes observou a família, o funcionário que havia perdido a mãe para o demônio que ele havia trazido para o convívio com todos eles e parou no meio da igreja.
_ Desculpe, Selma – começou ele. – Eu não sabia o que estava fazendo. O desespero era tanto que eu pedi ajuda. Recebi a ajuda errada e aceitei. Eu estava sem dinheiro até para pagar as contas de casa. O tratamento do Marcelo teria que ser interrompido. A gente iria perder a casa, perder o nosso filho, perder tudo.
_ Mas, Estêvão, a que preço? – perguntou ela chorando.
_ Eu disse que faria qualquer coisa. Qualquer coisa! – repetiu ele gritando e gerando um eco na igreja. – Isso incluiu perder meus pais para o demônio. Ambos se suicidaram e por isso, vão para o inferno. Perder amigos e perder vocês para ganhar dinheiro, para ter a saúde do Marcelo, para ter lucros e lucros sem fim.
_ Eu perdi minha mãe – lembrou Augusto.
_ Você foi o único que percebeu e o único que rezava durante todo o dia. A você, ele não conseguia fazer mal, mas acabou prejudicando você de um jeito que sabia que iria feri-lo muito. Eu sinto muito, Augusto.
_ Meu filho – interveio o padre, – ainda dá tempo de você se salvar.
_ Não, padre – respondeu Estêvão. – Eu não posso mais ser salvo. Eu estou me tornando igual a ele. Eu matei, padre. Matei e devorei o coração de doze mendigos nas ruas de Juiz de Fora. A Polícia procura, mas eles nunca vão descobrir o que houve. Eu matei os desgraçados porque só consigo me alimentar dos corações recém-retirados dos corpos. Não como comida normal há mais de ano. Eu estou me tornando um demônio. Sem volta, padre.
_ Meu filho, para tudo há o perdão de Deus – disse o padre enquanto a família desesperada apenas chorava.
_ Eu vou embora. Vou concluir o pacto com ele e deixá-los todos em paz.
_ Não faz isso, pai – pediu Marcelo chorando. – Eu não mereço. Prefiro voltar a ser doente, até morrer.
_ Não! – gritou Selma. – Não quero mais desgraças nessa família.
_ Eu vou com ele – repetiu Estêvão. Me perdoem.
Ele começou a andar em direção à saída quando Augusto gritou com ele:
_ Pare, Estêvão. Pare onde está.
Em um ímpeto de loucura o gerente do restaurante correu pela igreja colocando-se entre Estêvão e a porta da frente da Matriz. Estêvão parou, olhou para o empregado e ouviu o barulho que o demônio fazia do lado de fora provocando uma escuridão assombrosa no meio do dia e ventos fortes que açoitavam as paredes da igreja. Parecia que iria desabar uma tempestade. Não havia ninguém que se atrevesse a sair às ruas. O trânsito na Avenida Rio Branco estava como sempre paralisado por engarrafamentos. Havia muitos ruídos em todo centro de Juiz de Fora. O demônio rodeava a igreja e chamava por Estêvão. Queria que seu servo saísse para completar o pacto.
_ Na manhã da morte do meu pai – Estêvão gritou para que todos ouvissem claro, – ele esteve na cozinha lá de casa. Nós fizemos um pacto. Eu lhe daria tudo que mais amasse, exceto vocês – apontou para mulher e filhos – e ele me daria tudo o que eu precisasse. Ele me perguntou se eu aceitava qualquer coisa em troca disso e eu aceitei. Eu aceitei as mortes dos meus pais e receber a herança que me ajudou a fazer o restaurante. Ajudou nos lucros do restaurante e eu fiquei rico. Ajudou na saúde de todos vocês, mas em troca, eu teria que me tornar um demônio como ele. Eu estou me tornando um demônio. Eu já tenho a forma de seu corpo. Eu preciso ir.
Ele empurrou Augusto, que caiu a metros de distância, e passou pela porta da frente da Matriz. Todos viram quando ele se transformou em um demônio semelhante ao seu algoz. Augusto se recompôs da queda e gritou para a família:
_ Eu vou buscá-lo!
_ Meu Deus! – gritou Selma.
O espanto maior de todos foi verem um par de asas brancas surgirem nas costas de Augusto que saiu voando pela porta da frente da Catedral.

Imagem: http://www.mariadoresguardo.com.br/2010/04/catedral-metropolitana-de-juiz-de-fora_1528.html

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Artur Laizo Escritor

Artur Laizo nasceu em 1960, em Conselheiro Lafaiete – MG, vive em Juiz de Fora há quatro décadas, onde também é médico cirurgião e professor. É membro da Academia Juiz-forana de Letras e da Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafaiete, Sociedade Brasileira de Poetas Aldravistas e presidente da Liga de Escritores, Ilustradores e Autores de Juiz de Fora - LEIAJF.

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