EU MATEI MINHA FILHA – Pão de Canela e Prosa
Pão de Canela e Prosa

EU MATEI MINHA FILHA

_ Eu matei minha filha!

O velho de barbas brancas gritava e todo o hospital psiquiátrico ouvia, apesar de estar confinado no seu quarto de isolamento e contido no leito.

_ Eu matei minha filha! Eu matei minha filha!

Sempre que sentia falta de casa ou da família ele começava a gritar e sempre e sempre chorava e pedia perdão a Deus por ter assassinado a própria filha há muitos anos.

_ Mas ela está viva – disse ele com os olhos arregalados e um sorriso na boca sem dentes. – Ela está viva! Ouçam a música! Ela está tocando piano novamente.

Na sua cabeça, a filha tocava uma sonata de Mozart. Ele adorava ouvir a filha tocando piano, principalmente tocando Mozart. Ele balançava a cabeça seguindo o som imaginário do piano e se acalmava lentamente.

A moça ao piano fundia-se ao som e era uma imagem muito bonita de se ver. Martina tocava piano todas as tardes e enchia a casa de música. Filha única de uma família abastada, a linda moça de dezessete anos era tratada como uma princesa. A herdeira da família Torres de Oliveira. Desde tenra idade mostrou interesse pela música e tocava vários instrumentos, mas o preferido dela e de seu pai era o piano.

A casa onde moravam era uma mansão de três andares rodeada de jardins. O pai, dono de empresas de azeite, importador de grande renome nacional tudo fazia para que a família tivesse todo o conforto de uma vida de luxo. Antônio Torres de Oliveira e sua esposa Maria Esméria Torres de Oliveira tiveram uma única filha, Martina. A mulher ficara impossibilitada de ter outros filhos e por isso mesmo dedicavam à filha única todo o carinho que podiam lhe dar. A moça crescera como se pertencesse à nobreza.

Apesar de estudar em ótimo colégio, destinado para ricos da cidade, Martina conheceu João Vidal, que também estudava na mesma sala de aula da garota. O rapaz de dezoito anos, negro, estudava no colégio com bolsa de estudos de um político que quisera fazer uma demonstração de solidariedade. Isso para ser eleito, é claro. João era um rapaz inteligente, estudioso, mas vivia em uma faixa social muito abaixo da princesa Martina.

A moça de grandes olhos azuis olhou para os sorridentes olhos negros do amigo e desenvolveu um interesse especial pelo colega. Começaram a estudar juntos, a fazer trabalhos de escola na biblioteca do colégio, a estar sempre juntos. Ela começava a amar o colega e era correspondida. Os colegas foram os primeiros a comentar e esse assunto acabou chegando aos ouvidos dos Torres de Oliveira. O pai, um dia, foi de carro para a porta do colégio, esperar que a filha saísse e ver com seus próprios olhos quem era o negro pobre que andava com a sua filha. Depois que viu a moça sair com o rapaz conversando e sorrindo feliz, voltou para casa para espera-la. Não sabia o que iria fazer. Comentou com a esposa que a filha estava se engraçando com um “criolo” e que ele lhe daria uma correção.

A pobre moça chegou em casa e levou uma reprimenda do pai que entre outras coisas lhe disse:

_ Eu não criei você para que namore um preto, um pé rapado, um sujeito que não tem onde cair morto. Você está proibida de voltar a vê-lo, de conversar com ele.

A moça sem poder se defender, sem poder abrir a boca para dizer qualquer coisa, foi para a sala de piano e tocou por horas a fio. O som inundava a casa e a dor inundava a sua alma. A mãe chorava no quarto e a filha entre as notas musicais. Só lhe restava o piano e o aconchego de Mozart. Parou de tocar quando exausta, não podia mais mexer os dedos. Trancou-se no quarto e entre lágrimas acabou adormecendo.

Não pode ir à escola no dia seguinte. O pai lhe disse que estava de castigo em casa. Ele iria pensar no que fazer depois. A mãe tentou ajudar, mas submissa que era ao pai e senhor absoluto da família nada podia fazer. Martina passou o dia estudando no seu quarto, uma vez ou outra voltou para o piano e tocou Réquiem de Mozart que tanto gostava, mas que nunca usara para a própria dor. O pai chegou do escritório e ainda pode ouvir o final da música que o compositor fizera para seu próprio sepultamento.

Quando Martina voltou para a escola, dias depois não encontrou João Vidal. Perguntou aos amigos e lhe disseram que ele não voltara a escola naquela semana também. Uma colega de turma, maldosa e que não gostava de Martina comentou:

_ Achamos até que vocês dois tinham se casado e estavam em Lua de mel.

Martina preferiu não dar confiança para o comentário da invejosa e se afastou. Como não via João, telefonou para seu celular e o rapaz não quis atender. Ela insistiu e depois de muitas chamadas ele atendeu.

_ O que você está querendo? Não basta me tirar da escola?

_ Como assim, João?

_ O diretor da escola me chamou para me dizer que eu não poderia mais ficar na escola e que iria me dar a minha transferência. Eu perguntei por que, e ele me disse que seu pai tinha mandado ele fazer isso. E que você sabia de tudo.

_ Eu não sei de nada disso, João. Eu quero que você continue estudando comigo – disse Martina assustada com o que o rapaz lhe contara.

_ Eu não vou poder mais, Martina. O diretor já arrumou os papéis de transferência – o rapaz quase chorava ao explicar para a amiga.

_ Onde você está, João? – perguntou ela.

_ Estou no centro da cidade – respondeu ele. – Eu precisava sair de casa no horário da aula porque a minha mãe ainda não sabe disso.

_ Eu vou encontrar você. Estou saindo da escola agora.

A moça saiu da escola e foi em direção ao rapaz. Ele estava na praça central, gastando tempo para não ir para casa. Ao avista-lo, Martina correu mais depressa. Chegou perto do amigo e o abraçou. Ele a princípio queria evitar o abraço, mas acabou se deixando abraçar e abraçou também a sua amada. Os dois choraram um tempo em silêncio e depois Martina falou:

_ Deve estar acontecendo um engano, meu pai não conhece você. Ele não pode querer transferir um aluno que ele não conhece.

_ Ele deve saber que a gente se gosta – explicou João. – Talvez ele queira que eu fique bem longe de você.

_ Isso não pode acontecer – exaltou-se ela. – Vamos agora para a minha casa conversar com ele.

_ Você enlouqueceu – quase gritou João. – Eu não posso ir para sua casa.

_ Vamos sim – ordenou ela.

Saíram os dois pela rua de mãos dadas e chegaram à casa da loira em um piscar de olhos. A mãe tinha saído e os dois entraram pela casa. Os empregados não se importaram com a chegada da garota e ela levou João direto para a sala de piano. Queria tocar alguma coisa para ele antes do pai chegar e conversarem. Fê-lo sentar-se próximo a ela e começou a tocar. O rapaz também gostava de Mozart, principalmente influenciado pela amiga. Uma sonata, duas, quando Martina estava no início da terceira música o pai abriu a porta da sala do piano e parou estarrecido ao ver João sentado ao lado de sua filha. Na sua cabeça o mundo desabou. Então ela trouxera o negro para dentro de sua própria casa, pensou.

_ Martina, o que significa isso?

_ Como assim, papai? – ela se levantou do piano. – O senhor conhece o meu amigo João Vidal?

_ Não. E não quero conhecer – disse ele áspero. – Quero que ele saia da minha casa agora.

_ Por que, papai? O João é meu amigo de escola e …

_ Eu não quero saber. Não quero esse negro dentro da minha casa.

_ Então é por isso que o senhor mandou transferi-lo de escola? – gritou Martina. – Para afasta-lo de mim?

_ Claro! Onde já se viu minha filha andando com um Zé-ninguém?

_ Mas não está certo isso – chorou Martina. – Eu amo o João.

Ambos se assustaram, pai e João Vidal olharam para ela. Ela aproximou-se do rapaz e pegou na sua mão.

_ Eu não vou permitir que você faça isso – gritou o pai vindo em sua direção com a mão levantada para dar-lhe um tapa.

Martina correu do pai e foi para a sacada da sala do piano no terceiro andar. O pai seguiu-lhe o encalço e ao chegar na sacada bateu no rosto da filha.

_ Para mim, você pode morrer, mas com esse negro você não namora.

A moça tentou sair de perto do pai e entrar em casa, mas o homem muito maior não lhe dava passagem e agarrou os braços da filha e começou a sacudi-la para fazer entender o que ele queria dizer e ela fazia forças para se soltar dele e ele a segurar e apertar os seus braços. Em determinado momento ele deixou escapulir os braços da filha que bateu no parapeito da sacada e caiu. Caiu do terceiro andar em frente a porta principal da mansão. Martina quebrou o pescoço e morreu na hora. Ouviu-se o grito de desespero do pai que precipitou-se escada a baixo para tentar salvar a única filha.

Com o corpo da moça nos braços, sujando-se do sangue que saia de vários ferimentos do corpo inerte, ele chorou por muito tempo até que chegou uma ambulância, chamada por um dos empregados e separou pai e filha. Constataram o óbito da garota e precisaram sedar o pai. A mãe chegou desesperada, mas nada mais poderia fazer. João Vidal deixou escapar uma lágrima e, como não conhecia ninguém ali, afastou-se para chorar sozinho e continuar a sua vida, agora pela metade.

_ Como é que o senhor sabia que o paciente iria se acalmar com a música, doutor João Vidal? – perguntou a enfermeira ao médico que cuidava do velho louco.

_ Eu sabia, simples assim – respondeu doutor João Vidal.

Além de médico, desde a morte de Martina, João Vidal dedicava-se também ao piano e ao estudo de Mozart em homenagem ao único amor de sua vida.

 

Conto publicado na Antologia: Lafaiete em Prosa e Verso – 2017, volume XXIII

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Artur Laizo Escritor

Artur Laizo nasceu em 1960, em Conselheiro Lafaiete – MG, vive em Juiz de Fora há quatro décadas, onde também é médico cirurgião e professor. É membro da Academia Juiz-forana de Letras e da Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafaiete, Sociedade Brasileira de Poetas Aldravistas e presidente da Liga de Escritores, Ilustradores e Autores de Juiz de Fora - LEIAJF.

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