NINGUÉM DEIXARIA ACONTECER – Pão de Canela e Prosa
Pão de Canela e Prosa

NINGUÉM DEIXARIA ACONTECER

I
A maior tragédia da vida dela
Foi ter nascido naquela favela,
Ter nascido negra, pobre e mulher,
Querer ser alguém num mundo atroz,
Querer ser mais, meter a sua colher
Contra todos, mesmo contra seu algoz.
A sua tragédia maior foi ser
O que ninguém deixaria acontecer…

II
Ela cresceu sozinha, e tão mal vista.
Queria ser mais, e ser uma artista…
Seu povo ria da negra: “Coitada,
Onde vai acabar essa menina?
Não percebe que hoje uma favelada
Tem que se sujeitar, sofrer sua sina.
Onde está com a cabeça essa pobre,
Esquecendo dos seus, quer virar nobre?”

III
Um dia, a menina desceu o morro,
Maltrapilha, magra, pedia socorro.
O povo da cidade teve medo
Daquele ser sofrido, diferente.
Para todos era outro arremedo
E viram na mocinha um delinquente.
Ela apenas queria viver bem,
Queria sorrir, ser feliz também.

IV
Parada, sentindo cheiro de pão,
Há dias não comia, perdeu o chão,
Caiu desfalecida na calçada.
O velho português da padaria
Não viu uma mendiga meliante,
Mas um ser que sofria de anemia.
Chamou rápido seu ajudante,
Tiraram a faminta do relento,
Aqueceram, lhe deram alimento.

V
A adolescente demorou por dias,
Entre febre, corpo quente e mãos frias,
Recuperou-se muito lentamente.
Pode ver todo o amor que recebia.
Naquela casa, naquele lar quente,
Estava feliz, ria de alegria.
O velho português era gentil
Gostava daquele ser infantil.

VI
Recuperada, ela queria emprego
Para escapar daquele seu degredo.
Aprendeu a ler, somar dois mais dois,
Aprendeu a vender pão e café.
Ria, criança, ouvindo “ora pois pois”,
Tornou-se uma mulher de muita fé
E bem vestida, muito bem nutrida
Quis saber dos seus, olhar sua vida.

VII
Subiu o morro, cheia de esperança,
Lembrou sua vida, quando criança
Doeu no estômago lembrar da fome,
Mas procurou a família curiosa.
Não achou, não lembravam do seu nome.
Irmãos mortos na vida perigosa.
Ela chorou de saudade, de pena,
Deixou a favela, vida pequena.

VIII
Olhos escondidos, frestas escuras,
Olhares anônimos, faces duras,
Espreitavam a mulher de corpo lindo.
Inveja! Ela traiu a comunidade!
Deixou a todos que se comprimindo
Morriam esquecidos da cidade.
Ela os deixou, deixou todos ao léu
Não tinham nada, ela seria réu.

IX
Ela tornou-se a filha do portuga,
Substituiu aquela, que na fuga,
Um assassino bêbado matou
Dirigindo em grande velocidade.
Morreu também a mulher que ele amou.
E o motorista livre na cidade…
Ele tocou a vida na sua morte.
Ela chegou, ele viu que era sorte.

X
Durante anos, pai e filha tocaram
Os negócios que muito prosperaram.
Ela estudou, sabia se vestir,
Sabia duas línguas, era linda,
Queria ser artista, construir
Outra vida, mas como tudo finda,
Um dia, chegou em casa mais tarde
E na rua em frente, havia um alarde.

XI
A padaria aberta, aquela hora,
Não era boa coisa, e apavora
Quem lembra a face tão assustada
Da filha que procurava o seu pai.
Onde estaria aquela pessoa amada?
Ele estaria morto? “Crendeuspai!”
O que havia de certo acontecido
O velho estava desaparecido.

XII
Ela não pode então se aproximar.
A polícia precisava arrumar
A grande desordem e descobrir
O que era aquilo, de quem era o sangue
Que estava ao balcão e a tudo encobrir.
Era trabalho sujo de uma gangue.
Ninguém sabia ao certo, somente ela,
Ela que levou inveja à favela.

XIII
O homem foi morto, dinheiro roubado,
Era um aviso, um comunicado.
Ela devia perceber que estava
Agredindo a todos que não queriam
Vê-la bem, vê-la feliz. Se mostrava
Bem e isso não lhe permitiriam.
Perdeu seu porto seguro, perdeu,
Sempre perdia… Nunca se esqueceu!

XIV
Queria se aproximar, foi barrada,
Um policial gritava, foi parada.
Ela disse que era filha do morto,
O guarda riu. Como isso era possível
Ela negra, o velho branco, olhou torto.
Ela implorou, ele estava impassível,
Precisou dos vizinhos e com certeza,
Causou espanto, muita estranheza.

XV
Ela sabia da sua desgraça,
Quem era o autor. O que quer que ele faça.
Ela jurou: “Ele vai padecer!”
Fará o que puder, ela era forte
Se preciso, faria acontecer
Com o assassino, muito mais que a morte.
Ela se lembrou quando menina,
Lembrou da fome, tristeza, sua sina…

XVI
Ergueu a padaria, ficou mais rica.
Ódio no coração, que não se explica,
Queria vingança, queria a morte
Daqueles que destruíram sua vida,
Acabaram com quem amava. Sorte
Tivera ao ser, na época, acolhida,
Ou teria morrido, tanta fome,
Não sabiam quem era, nem seu nome.

XVII
Sabia que o traficante, prosperava,
Mantinha o controle, e a muitos matava.
Ela seguia todos os seus feitos:
Era casado, tinha filhos, netos,
Sabia quem era e até seus defeitos.
Conhecia quem era seus afetos.
Como sofreu, também faria sofrer
Aquele que queria vê-la morrer.

XVIII
Sozinha, seria mais complicado,
Precisava do apoio, de um soldado.
O tenente que não a deixou ver
O que aconteceu na sua padaria,
Voltou a vê-la, interessado.
Ela aceitou o namoro com alegria:
Ali estava um homem muito forte
Tanto para vida quanto para a morte.

XIX
O militar presenteava flores,
Amenizava aos poucos suas dores.
Mas ela queria mesmo matar
Aquele cujo nome era Alemão,
Queria destruir, mortes vingar.
Pro monstro não haveria perdão.
Ele era o culpado porque ela sofria.
Ela, sua família inteira, queria.

XX
Maria da Paz, não tinha sossego,
Não aquietava a alma, sem desapego,
Queria a todo custo, continuar,
Queria ser artista, mas doía
Aquela mancha, aquela nuvem no ar,
E o veneno da dor, seu peito roía.
Ela precisava achar um bom plano,
O loiro do morro, entrar pelo cano.

XXI
Seu marido, tenente Aparecido,
Não iria ajudar e decidido,
Tentou demover a ideia da fera,
Mas só conseguia aumentar a dor.
Por tudo quanto sofreu, pelo que era,
Ela era incapaz de ter amor.
Ele não ajudaria a vingança,
Ela estava agindo feito criança.

XXII
Mas, também no morro o ódio crescia,
Alemão, a negra também queria.
Sentia que ela devia morrer.
Ele já acabara com sua família,
Matou irmãos, fez mãe enlouquecer…
Ele ficaria sempre em vigília
Precisava matar a mulher bela,
A mulher que ele amava: “Cadela!”

XXIII
Não sabia o que fazer, negra cadela,
Bastarda adotiva, ela era tão bela…
A filha adotiva do português
Queria resolver sua contenda,
Queria que o bandido de uma vez,
Deixasse de pensar que ela era prenda.
Estava chegando o dia terrível,
Agora, esperar não era possível.

XXIV
Maria da Paz, tinha uma guerra
Na mente, queria voltar à terra
Daquele morro onde um dia nasceu.
Queria paz, para isso iria
Armada e com o ódio que lhe cresceu
Seria capaz de acabar co’o mundo.
Subiu no meio da rua, mostrou
A cara limpa e todo mundo olhou.

XXV
Aquela de quem não falavam nome,
Era conhecida mesmo sem fome,
Era conhecida, mesmo saudável,
Era muito odiada, por isso tudo.
Sua volta ali, não era esperável.
Silêncio nas casas, o morro mudo.
Ela sabia onde encontrar, por certo,
Sabia que Alemão estava perto.

XXVI
O loiro traficante e assassino,
Apareceu na rua, era franzino,
Olhou a mulher de seus desejos
Sorriu, mas viu que ela estava armada
Sacou também sua arma, sem gracejos,
O som dos tiros, povo em disparada.
Polícia chegou, não era preciso,
Dois corpos no chão, o morro indeciso.
XXVII
Aparecido à frente, inda tentou
Salvar a mulher que tanto amou,
Mas já era tarde para Maria,
Que a paz do seu nome nem sempre teve,
Nunca teve sorte, nem alegria,
Não virou artista e se não esteve
Naquela favela por toda vida,
O mal nunca a deixou livre e esquecida.

XXVIII
A maior tragédia da vida dela
Foi ter nascido naquela favela,
Ter nascido negra, pobre e mulher
Querer ser alguém num mundo atroz…
Ninguém deixou seu caminho escolher,
Ela encontrou no morro o seu algoz,
Mesmo depois que tanto viveu.
Mas da fome e dor, nunca se esqueceu…

               

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Artur Laizo Escritor

Artur Laizo nasceu em 1960, em Conselheiro Lafaiete – MG, vive em Juiz de Fora há quase quatro décadas, onde também é médico cirurgião e professor. É membro da Academia Juiz-forana de Letras e da Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafaiete e presidente da Liga de Escritores, Ilustradores e Autores de Juiz de Fora - LEIAJF.

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