ALMOÇANDO COM CLARICE LISPECTOR – Pão de Canela e Prosa
Pão de Canela e Prosa

ALMOÇANDO COM CLARICE LISPECTOR

Eu queria ter convidado a Clarice Lispector para almoçar na minha casa hoje. O cardápio do almoço foi “frango ao molho pardo”. Eu sei que ela gostava tanto quanto eu gosto. Ela disse isso em um poema:

NOSSA TRUCULÊNCIA

Quando penso na alegria voraz
com que comemos galinha ao molho pardo,
dou-me conta de nossa truculência.
Eu, que seria incapaz de matar uma galinha,
tanto gosto delas vivas
mexendo o pescoço feio
e procurando minhocas.
Deveríamos não comê-las e ao seu sangue?
Nunca.
Nós somos canibais,
é preciso não esquecer.
E respeitar a violência que temos.
E, quem sabe, não comêssemos a galinha ao molho pardo,
comeríamos gente com seu sangue.

Minha falta de coragem de matar uma galinha
e, no entanto, comê-la morta
me confunde, espanta-me,
mas aceito.
A nossa vida é truculenta:
nasce-se com sangue
e com sangue corta-se a união
que é o cordão umbilical.
E quantos morrem com sangue.
É preciso acreditar no sangue
como parte de nossa vida.
A truculência.
É amor também.

O frango ao molho pardo, ou galinha ao molho pardo tem origem na África onde a galinha era cozida no próprio sangue. Também chamada de cabadela, cabedela ou cabidela a receita foi aperfeiçoada em Portugal. Acredita-se que a receita é anterior ao descobrimento do Brasil tendo sido citada nos versos de Camões.
É um dos pratos típicos da culinária mineira. Em alguns restaurantes típicos em cidades históricas é um dos pratos principais disputando o pódio com o frango com quiabo ou com ora-pro-nobis. Os três pratos – eu adoro os três, com discreta preferência para o frango com quiabo – são acompanhados de arroz branco e angu.
Detalhe importante é que gosto de angu temperado e feito com fubá grosso ou fubá de “moinho d’água”. O fubá fino eu acho que deva ser reservado para mingau doce com canela por cima. O grosso também é muito bom para broas e “pela égua” um mingau temperado com ou sem carne, mas com couve rasgada dentro. Eu estou salivando ao escrever e não estou com fome.
Tudo isso simplesmente porque eu queria que a Clarice Lispector tivesse vindo almoçar comigo. A gente iria conversar o dia todo e quem sabe, cada um de nós iria escrever sobre o almoço de forma pessoal e bem diferente. Uma pena que não cheguei a conhecê-la e nunca pudemos dividir um frango ao molho pardo.
Outra coisa em comum: amamos o frango servido na mesa, de preferência bem quente, mas nem ela nem eu jamais tivemos coragem de matar um frango. Assim como ela acho muito interessante a ave viva no terreiro com seus pescoços esquisitos.
Será que se não comêssemos frango ao molho pardo, “comeríamos gente com seu sangue”?

Sobre o autor Ver todas as postagens

Artur Laizo Escritor

Artur Laizo nasceu em 1960, em Conselheiro Lafaiete – MG, vive em Juiz de Fora há quatro décadas, onde também é médico cirurgião e professor. É membro da Academia Juiz-forana de Letras e da Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafaiete, Sociedade Brasileira de Poetas Aldravistas e presidente da Liga de Escritores, Ilustradores e Autores de Juiz de Fora - LEIAJF.

Deixe uma resposta

Seu endereço de email não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados *