Ele entrara no ônibus, todo de branco, pasta verde de oleado sob o braço, como todo acadêmico iniciante voltando para casa, mostrando que fazia Medicina. E era daqueles que respiravam Medicina, sonhavam com Medicina, comiam e descomiam Medicina. Coitado!
De repente, encontra um professor. O mestre, tentando ficar incógnito, lia um jornal, ouvia qualquer coisa com fone de ouvidos e, como detestava andar de ônibus, principalmente interurbano, e detestava estar no meio de muita gente, queria, a todo custo, permanecer omisso.
O acadêmico viu o mestre e não se conteve:
– Mestre, eu não acredito. A sua presença só pode aumentar o prazer da minha viagem.
– Sim!? – respondeu o mestre tímido. – Você é meu aluno?
– Sim, mestre. Eu tenho o prazer e a honra de ser um dos seus pupilos.
O ônibus ainda parado na rodoviária, mas quem tentava entrar ou fazer alguma coisa dentro do ônibus era abalroado pelas palavras idiotas do aluno puxando o saco do mestre.
– O que o senhor está ouvindo? – pergunta o aluno. – Aposto que se trata de algum último congresso participado pela sua pessoa – respondeu o acadêmico, sem esperar que o professor se manifestasse.
– Não, é…
– Algum tratado de cardiologia?
– Não! – respondeu o mestre, já entre a vergonha e a raiva.
– Mas algum trabalho científico há de ser, com certeza…
– Não!
– Mas como não? Um mestre de igual sapiência não estaria perdendo tempo com algo que não lhe servisse para aumentar ainda mais os conhecimentos.
– Estaria sim. – responde o mestre.
– Mas para que o senhor não perca mais o seu tempo com bobagens, por que não aproveitamos esse tempo imenso de três horas de viagem e discutimos a vida dos “platelmintos e helmintos”? Eu adorei a sua última aula. Aquela que falava dos horrores do Shistosoma mansoni no fígado humano. É maravilhoso!
– Meu filho, eu preferiria…
– Continuar ouvindo o discurso que vai fazer na tese de doutorado!
– Não!
– Mas então, mestre, eu não sei o que o senhor pode estar ouvindo nesse aparato moderno que desperdiça o tempo do ser humano. Aliás…
– Aliás, eu quero que você se assente e me dê sossego – diz o mestre irritado. – Quero ficar quieto.
– Se o mestre não está se sentindo bem… Posso fazer alguma coisa? Não sei muito. Talvez saiba um milionésimo do que é seu arsenal cerebral, mas quero ajudar.
– Se quer ajudar, meu amigo – diz o mestre irritado – deixe que as pessoas passem e se sentem. Sente-se, você também, eu estou bem.
O acadêmico percebera, então, que todos ou quase todos os passageiros do ônibus ainda estavam para entrar no veículo e que ele atrapalhava a tudo e todos. Liberou a passagem, deixou que tantos e tantas se assentassem e então procurou pelo seu lugar que outro não poderia ser que ao lado do mestre. Ao vê-lo, o professor quase teve um acesso de cólera. Tentou dormir, mas os olhos do garoto não paravam de observar com paixão de fã o mestre inteiro.
– Você não consegue dormir? – perguntou o professor.
– Não, mestre. Tento captar telepaticamente o que o senhor escuta nesses fones, para ampliar meus conhecimentos.
O mestre não se conteve. Arrancou dos ouvidos os fones e meteu-os nos do aluno. Levantou-se, puxou a campainha e desistiu de viajar.
O aluno continuou a viagem. Precisava chegar de branco e pastinha verde escrito Medicina na sua cidade. Precisava mostrar para a população que ele era o melhor.
Continuou a viagem chorando decepcionado. Mas não tirou os fones do ouvido por mais que detestasse e fez a viagem inteira ouvindo “Menudos”.
Maloca Querida. 1998:11-14.