VELHICE – Pão de Canela e Prosa
Pão de Canela e Prosa

VELHICE

Eu estou velho!
Não sei nem mesmo se vou conseguir acabar de escrever esse texto.
Hoje, as dores no corpo estão piores e limitando mais meus movimentos. Não há mais o que fazer já que a idade avançada é um prêmio para muitos. Hoje é meu aniversário e estou fazendo noventa e seis anos. Estou feliz? Claro que não! A mente lúcida quer coisas que o corpo não aceita mais. Não falo só de sexo, mas é uma das coisas que me falta me falta. Andar livre, ir ao centro da cidade, não dá mais. As pernas doem, a coluna reclama.
A visão me foi preservada, mas ainda assim escrever muito tempo, ou ler um livro por uma hora que seja, só durante o dia com muita luz. Mais do que esse tempo as vistas embaçam, os olhos ardem e fico com dor de cabeça.
Eu sempre fui um amante incansável e por mim passaram muitos corpos e beijei muitas bocas. Não me casei jamais. Jamais quis ter o compromisso de ter que me doar inteiramente a uma só esposa, ou ter uma família. Nunca quis ter filhos. Enquanto estava na ativa com dinheiro sobrando, vivi rodeado de pessoas belas e interesseiras que queriam usufruir de minha vida próspera e com uma estabilidade financeira que só consegui porque trabalhei muito desde minha adolescência. Hoje, estou só e isso ao invés de me incomodar, me dá uma paz serena e calma. Não tenho mais a casa cheia de urubus, que ao longo da minha vida, sempre quiseram comer da minha carne mesmo eu ainda estando vivo. Afastei-os todos de mim e hoje não sei mais quem são meus parentes ou amigos.
Com noventa e seis anos é difícil ainda ter algum amigo de infância – a maioria já morreu. Outros amigos que fiz na vida, assim como o tempo os trouxe, também os levou pra longe e algumas vezes ainda recebo um telefonema. Outro dia mesmo o Carlos Eduardo me ligou de Belo Horizonte e eu achei, pela sua voz, que ele estava mal. Talvez estivesse bem mais velho que a idade real e quem sabe se não morreu. Se ele morreu que Deus o tenha!
O tempo passa e é implacável com nossa mente, com nosso corpo, com nossa vida e leva de nós as pessoas com as quais convivemos e temos uma relação mais íntima. A mente às vezes, falha e a gente não se lembra de coisas recentes, ou conta a mesma coisa duas ou três vezes.
Viver muito, aliás, é uma desgraça como aconteceu comigo. Eu estou sozinho como sempre quis, mas nunca imaginei que seria tão doloroso. Hoje, moro em uma casa de repouso, como o dono gosta de denominar esse asilo aqui. Uma quantidade de velho transitando o dia todo de um lado para outro. Eles vão pro sol, sentam ao sol, saem do sol, reclamam do sol, não podem tomar chuva, detestam chuva, não podem comer demais, comem demais, sentem saudade, sentem-se tristes, brincam como se fossem alegres, reclamam da vida, reclamam da comida, reclamam de tudo.
Eu não sei como posso ajudar, mas também não quero ajudar. Quero ficar quieto no meu canto e sofrer sozinho, chorar sozinho, sorrir sozinho, fazer tudo sozinho… Não sei o que estou fazendo aqui. Não tenho para onde ir, por isso estou aqui. Não posso morar sozinho e não tenho parentes para morar e cuidar de mim. Eu fiz isso! Todos os parentes e amigos eu os afastei de mim porque eu sou assim. Não quero dividir! Não gosto de dividir! Não sei dividir nada com ninguém. Por isso, estou aqui.
Hoje, estou fazendo noventa e seis anos. Incrível como o tempo passou depressa, mas as lembranças parecem que estão muito longe. Lembrar da minha primeira namorada, do primeiro beijo, do primeiro emprego, do primeiro carro, do primeiro relacionamento sexual e mais profundo… A gente sempre se lembra e fala do primeiro, mas sempre houve o segundo, o terceiro o não sei que número de tudo que fiz na vida.
Eu vivi bem? Por certo que sim! Tive muito mais alegria que tristeza e talvez, seja isso que me mantém vivo e firme em um lugar como esse. Não quero dizer que seja ruim e que eu seja mal-tratado aqui dentro, mas eu jamais me adaptaria a uma vida coletiva como essa se eu não precisasse dela.
Um velho como eu não tem mais esperança de fazer muitas coisas. Pode ser que a qualquer momento a indesejável chegue como disse Manuel Bandeira:

CONSOADA

Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
Manuel Bandeira
BANDEIRA, M., Libertinagem, 1930.

Eu estou velho! Mas ainda vou viver muito tempo. Para mim agora, qualquer dia é muito tempo. Uma hora custa mais de seis horas para passar. Eu não posso ler muito porque as vistas estão fracas e os óculos novos não são bons. Eu não posso escrever minha memórias porque o povo vai criticar dizendo que isso é coisa de velho. Se eu resolver sair na chuva, vão me prender no quarto dizendo que eu enlouqueci e que preciso de uma camisa de força. Não dá para fazer muita coisa. Não dá para comer muita coisa, embora que com noventa e seis anos, eu coma o que me apraz no momento em que eu estou com vontade de comer. Nunca fiz dieta e não será agora no fim da minha estrada que deixarei de comer isso ou aquilo. Não tenho que fazer escolhas como manda a Cecília Meireles no seu poema:

Ou isto ou aquilo

Ou se tem chuva e não se tem sol,
ou se tem sol e não se tem chuva!

Ou se calça a luva e não se põe o anel,
ou se põe o anel e não se calça a luva!

Quem sobe nos ares não fica no chão,
quem fica no chão não sobe nos ares.

É uma grande pena que não se possa
estar ao mesmo tempo nos dois lugares!

Ou guardo o dinheiro e não compro o doce,
ou compro o doce e gasto o dinheiro.

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo…
e vivo escolhendo o dia inteiro!

Não sei se brinco, não sei se estudo,
se saio correndo ou fico tranquilo.

Mas não consegui entender ainda
qual é melhor: se é isto ou aquilo.
Cecília Meireles

O poema infantil da maior poetisa brasileira que não gostava de ser chamada de poetisa, nos mostra que a vida é feita de escolhas e nós passamos a nossa vida inteira optando por esse ou aquele caminho, por esse ou aquele doce ou guardar o dinheiro. Não preciso escolher mais nada!
Hoje, vou jogar cartas com o Leonel. Ele é um velho muito agradável de se conviver, mas rouba nos jogos de carta como ninguém. Não tem importância. Eu não preciso mais ganhar no jogo. Vou jogar para passar o tempo e rir um pouco. Na sala de jogos, outros velhos estarão gastando o tempo longo que só os velhos têm. Risos sem alegrias, falas sem nenhum nexo, muitas lembranças, muitas tristezas. Mas todos ali estarão juntos e unidos até a grande solidão que sempre temos na vida, que é a hora de ir dormir. Nós sempre dormimos sozinhos por mais pessoas que estejam na casa ou até mesmo no nosso colchão. Até mesmo depois de fazer amor, trocar juras, afagos, suores e beijos, até mesmo depois disso, viramos para o canto e dormimos sozinhos.
Hoje é um dia especial e eles vão, com certeza, fazer um bolo de aniversário para mim. Por isso, principalmente, vou estar na sala de jogos com todos.
Amanhã não sei o que será de mim!

Sobre o autor Ver todas as postagens

Artur Laizo Escritor

Artur Laizo nasceu em 1960, em Conselheiro Lafaiete – MG, vive em Juiz de Fora há quatro décadas, onde também é médico cirurgião e professor. É membro da Academia Juiz-forana de Letras e da Academia de Ciências e Letras de Conselheiro Lafaiete, Sociedade Brasileira de Poetas Aldravistas e presidente da Liga de Escritores, Ilustradores e Autores de Juiz de Fora - LEIAJF.

2 comentáriosDeixe um comentário

Deixe uma resposta

Seu endereço de email não será publicado. Os campos obrigatórios estão marcados *